O que se esconde por detrás da porta: a outra face da restauração
- Inês Matos
- 14/01/2022
- Atualidade Portugal Saúde
[Reportagem de Inês Matos]
Quando frequentamos um estabelecimento de restauração, seja ele de que tipo for, a maioria das vezes não temos a noção do que se passa do outro lado. O que as pessoas que lá trabalham vivem e têm que superar para nos servirem da melhor forma possível. Stress, frustração, cansaço: são apenas alguns dos obstáculos que precisam de ser ultrapassados.
Dependendo do tipo de restauração, as responsabilidades e preocupações divergem. Em estabelecimentos de Alta Cozinha as preocupações são o rigor, a qualidade, a apresentação do produto, o perfecionismo. Em restaurantes clássicos, todos os pontos anteriores também se destacam, no entanto, não tão levados ao extremo. Nestes, a rapidez do serviço já é tida em conta. Já em cafés snack-bar a rapidez e simplicidade são os pontos de referência. Por norma este tipo de estabelecimento serve refeições mais simples.
Foi no dia 10 de janeiro que o #infomedia marcou encontro com o chefe Tiago Lopes. O dia estava cinzento e a chuva ansiava por cair. Tiago Lopes é atualmente chefe no conceituado restaurante Vila Foz Hotel & Spa que entrou recentemente no Guia Michelin, arrecadando a sua primeira estrela.
O jovem de 30 anos começou o seu percurso muito cedo. Aos 15 anos teve o seu primeiro estágio e aos 17 já tinha contrato assinado com o Hotel Sheraton Algarve. Embora já tenha muita experiência na área, Tiago confessa que lida com “muita pressão, muito stress e muito aperto”. O quotidiano do chefe leva a que estas situações se tornem mais comuns, uma vez que, este é responsável pela gestão de matérias-primas, gestão dos recursos humanos, com o papel de líder e ainda assume a posição como elemento operacional, confecionando os diversificados pratos que o espaço oferece. Tiago afirma ainda que os restaurantes de hotéis se tornam mais exigentes que os restantes, visto que existem “vários outlets dentro do mesmo espaço”, começa por explicar. O facto de existir uma vasta concorrência e uma competição mais acesa, acrescenta ainda mais pressão.
“Eu trabalho nisto e vivo para isto”
Tiago Lopes
Como líder de equipa, o chefe confessa que existem momentos tensos, em que necessita de “respirar fundo” para conseguir gerir a brigada de cozinha da melhor maneira. No entanto, em dias de maior afluência, Tiago admite precisar de fazer um “reset”. “Estar na minha biblioteca a ler poesia ou a escrever funciona como um escape para o mundo real”, revela Tiago. Embora o chefe consiga lidar com o stress do quotidiano, existem outras pessoas com menos ferramentas para enfrentar as adversidades. “Já convivi com pessoas na área que estavam numa situação muito difícil, em termos de saúde mental. Uma dessas pessoas já teve um burnout e a outra já me confessou que não está bem mentalmente” , começa por explicar. No entanto, existem casos que não são reportados, acabando mesmo por serem “escondidos”, devido a estes serem, na maioria das vezes, negligenciados na área e na sociedade.
Já em momentos de maior tensão dentro da cozinha, Tiago é adepto de uma abordagem calma e pacífica, contrariamente à que vemos, muitas vezes, em programas conhecidos de culinária. “Numa situação de stress é desligar tudo e confrontar”, expressa o chefe.
“Eu trabalho todos os dias contra o relógio”
Tiago Lopes
Com a experiência a seu lado, Tiago começa por confidenciar que esta área “embrutece”, acabando por exponenciar diversas características. “Tornei-me uma pessoa mais calculista, reservada e desconfiada. Ficas mais fria”.
Marcelo Pereira, mestrando no curso de Ciências Gastronómicas pela FCNAUP (Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto) conta alguns episódios ocorridos nas cozinhas onde já trabalhou.
Marcelo já trabalhou tanto em cozinhas de Alta Gastronomia, como em cozinhas de restaurantes tradicionais. Segundo o estudante, o que diferencia os restaurantes de Alta Cozinha e restaurantes mais comuns é a “atenção aos detalhes, ou seja, desde a entrada do cliente até à saída. Tudo o que está envolvido nos pratos servidos, como a qualidade dos produtos”, explica. Outra dessemelhança que sentiu foi a “exigência e nível de pressão”. Em restaurantes como a Casa de Chá da Boa Nova ou o The Orangerie (The Yeatman Hotel), por onde o próprio passou, existe uma grande pressão para que tudo seja confecionado de forma perfeita e todo o serviço decorra sem falhas.
O estudante de 23 anos partilha ainda que, durante esta fase em que trabalhou em restaurantes mais ilustres, a ajuda dos pais para superar os períodos de ansiedade e stress foi imprescindível.
Quanto à sua experiência em restaurantes tradicionais, recorda os tempos em que trabalhou no Village Tapas Bar, localizado em Valadares, Vila Nova de Gaia. “Lembro-me que houve uma altura em que o restaurante estava a ter muita procura e onde não parávamos na cozinha”, começa por dizer. “Era stressante porque a cozinha não era muito grande e havia várias coisas que precisavam ser feitas, era engraçado”, relembra com sorriso no rosto.
No entanto existiam partes menos boas. “Houve momentos que não concordei com os ingredientes que o chefe que trabalhava comigo utilizava nos pratos. Considero que existiam alternativas muito mais saudáveis, menos dispendiosas e que não prejudicavam o sabor do prato”, revela Marcelo.
Ana Teixeira, funcionária de uma Pastelaria e Snack-bar em Labruge alega passar momentos de grande stress no local de trabalho. A jovem de 32 anos, residente em Vila do Conde, recorda que em momentos de maior pressão e stress, onde a “casa está cheia”, já pensou em desistir. “Sim, tive alguns momentos em que pensei desistir, admito que sim”, começa por dizer. “Ter uma equipa com espírito de trabalho e que nos ajude a resolver os problemas é muito importante nestes momentos”, acrescenta.
Embora exerça a sua profissão num sítio mais afastado da grande cidade, é ao fim de semana, especialmente ao domingo, que a confusão se instala no seu local de trabalho. Labruge, freguesia de Vila do Conde, é conhecida pela zona de praia, sendo esta a principal atração dos clientes que passam pelo café Doce Mar. Aos fins de semana é comum ouvir o barulho das cadeiras a arrastar, das portas a abrir e fechar, das crianças a rir e brincar, da máquina de café constantemente a trabalhar, dos sacos do pão, dos pratos a pousar nas mesas e dos funcionários acelerados com os pedidos.
É nestes dias que é preciso respirar fundo, para que tudo corra da melhor forma. Ana confessa que, nesses dias, o ambiente de trabalho é mais pesado, “há momentos que falamos mais alto, somos mais duros com os colegas”. A adrenalina e a responsabilidade de servir o cliente da melhor maneira e o mais rápido possível é o mais importante, daí a necessidade de ter uma equipa equilibrada, organizada e competente.
Segundo Ana, “respirar fundo e continuar” é o seu lema de trabalho. Embora existam momentos em que se sente desmotivada, cansada e prestes a desistir, a jovem tenta focar-se nos bons momentos que passou, ao longo dos anos, na Pastelaria.
“Profissões ligadas à área da restauração e, principalmente dentro do espaço da cozinha, são por si só stressantes”
Trabalhar na área da Restauração implica lidar com situações stressantes, desafiantes e até mesmo frustrantes. Assim, é necessário que o profissional consiga detetar quais são os momentos que o deixam mais ansioso para os conseguir superar. Desta forma, “uma pessoa que não tem, já por si, os recursos para lidar com situações stressantes, se for trabalhar para um ambiente de restauração vai ter muita dificuldade para se ajustar a esse meio ambiente”, explica a psicóloga Carla Nunes. No entanto, “se a pessoa já por si tem facilidade a responder à adrenalina, então naquele momento em que estão a trabalhar aquilo até pode ser benéfico para elas conseguirem ser produtivas e depois, quando saem do trabalho, deixam a situação stressante e as preocupações relativas ao trabalho”, acrescenta Carla.
Por esta razão, pessoas com dificuldade a lidar com este tipo de ambientes e pressões podem começar a deixar que essas situações de trabalho interfiram com a sua vida pessoal. Aí “passamos a ter uma condição patológica”, afirma. Neste ponto podem surgir consequências a nível pessoal.
É quando estes problemas surgem que passa a ser necessário procurar ajuda e acompanhamento de um psicólogo, e caso necessite de medicação, de um psiquiatra. Nestes casos, o aconselhável é ser seguido por ambos os profissionais, “sabemos que a medicação ajuda a estabilizar, a pessoa passa até a ver a situação de outra forma e a ter recursos para lidar com isso, mas se não tiver acompanhamento psicológico, deixando de tomar a medicação, e não resolvendo a origem do problema e do stress, vai continuar tudo igual. Por isso, o adequado é sempre procurar ajuda e ter acompanhamento tanto do psicólogo como do psiquiatra”, elucida Carla.
Carla explicita ainda a distinção entre stress e ansiedade.
Em casos menos graves existem ainda práticas que poderão ajudar em momentos de maior tensão.
Estes climas de grande pressão, a longo prazo podem ter várias consequências severas. A níveis físicos, podem provocar o aumento da tensão arterial, o que levará consequentemente a problemas relacionados com o coração, maior risco de Acidente Vascular Cerebral (AVC) e ainda, alterações hormonais no caso das mulheres.
Já a nível psicológico, pode provocar Burnout, ataques de pânico, depressão e, em casos muitos graves, suicídio.
Olá, o meu nome é Inês Matos, tenho 20 anos e frequento o 3º ano do curso de Ciências da Comunicação na Universidade Lusófona do Porto. Segui este curso porque desde muito cedo me apercebi que adorava comunicar. Neste projeto pertenço à editoria de Saúde.