Passados três anos, já sabemos viver com o coronavírus

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Passados três anos, já sabemos viver com o coronavírus

Cristina Marujo, diretora do Serviço de Urgências de adultos no Centro Hospitalar de São João (CHSJ), esteve na “linha da frente” do combate à pandemia de COVID-19 no maior hospital da região norte de Portugal. 

No dia 31 de dezembro de 2019, as autoridades chinesas notificaram pela primeira vez casos de infeção pelo coronavírus SARS-CoV-2 à Organização Mundial de Saúde (OMS), que três meses mais tarde, em março de 2020, iria declarar a doença como pandemia, devido a “níveis alarmantes de propagação e inação”. Passados 3 anos desde os primeiros casos confirmados pela doença COVID-19, a pandemia que alterou profundamente o mundo entra agora em transição. 

Cristina Marujo, diretora do serviço de urgências do CHSJ e especialista em medicina interna desde 2003, retrata os primeiros contágios na Europa e como o “fator de proximidade” mudou a perceção da gravidade do vírus entre os profissionais de saúde em Portugal. “Antes de março de 2020, todos nós achávamos que o COVID-19 não iria ser mais que uma gripe. Mas quando o vírus chegou à Europa, juntamente com os relatos do que estava a acontecer em Itália, percebemos que aquilo que tínhamos pela frente era uma luta muito difícil para a qual não estávamos totalmente preparados”, assume a diretora. “ Rapidamente se evoluiu para os cuidados realmente necessários”, acrescenta. Ainda numa primeira fase, Cristina Marujo realça a importância dos vários “fóruns de discussão” criados entre a comunidade clínica internacional e como promoveram a  partilha de conhecimentos entre países e instituições.  

Apesar da transição da pandemia para endemia ainda não ter sido definida, os profissionais de saúde já encaram o vírus como “endémico”. Segundo a diretora, alguns cuidados continuam a ser aplicados, nomeadamente nos hospitais, “como se ainda estivéssemos numa pandemia”. 

“Neste momento, claramente já sabemos viver com o vírus”, explica a profissional de saúde,  a qual menciona a “aprendizagem do combate à pandemia como essencial no entendimento do vírus e no alívio de algumas medidas de contenção, nomeadamente o encerramento da última ala COVID no Hospital de São João. 

“Percebemos que os cuidados mais importantes são aqueles que continuamos a dizer à população para seguir: manter a máscara, a higienização das mãos e evitar aglomerações quando doentes”.

Cristina Marujo

Atualmente, a diretora destaca que o recurso às urgências “por clínica de infecções respiratórias” é notavelmente superior aos poucos casos registados de COVID-19. “Neste momento, dá a sensação que o COVID-19 passou a ser mais um vírus, que já não tem de todo a gravidade que tinha”, aponta Cristina Marujo. “Os casos graves acontecem em todas as infeções víricas”, mas para a médica, é improvável que o vírus recupere a sua proporção e gravidade passada. Mesmo assim, a pandemia de COVID-19 deve ser “claramente” encarada como um alerta para novas pandemias no futuro. Relembrando as várias pandemias vividas ao longo da história, a diretora não rejeita a possibilidade de estas voltarem a acontecer no futuro próximo. “Os próprios microrganismos vão tentar encontrar outra forma de voltarem. Na prática, trata-se do próprio processo de seleção natural”, explica a doutora, que enfatiza igualmente a capacidade atual da medicina no combate a várias doenças, nomeadamente através do desenvolvimento de vacinas a curto-prazo. 

O balanço geral do combate ao vírus em Portugal é “muito positivo” para Cristina Marujo. A diretora salienta “a forma comos as instituições se prepararam e se reorganizaram” na luta contra o vírus, mediante as “dificuldades bem conhecidas” do contexto português. Apesar dos “momentos mais complicados”, entre os quais a segunda vaga de contágios no início de 2021, a  médica também realça as “melhores fases” da pandemia, como os “números excelentes” da primeira vaga e o sucesso do plano de vacinação. “Para Portugal, podemos estar muito orgulhosos daquilo que conseguimos. É evidente que houve vidas que se perderam e doentes que ficaram com sequelas, mas no geral, acho que se conseguiu dar a resposta necessária e que houve uma postura muito adequada dos médicos e de todos os profissionais de saúde.”    

A diretora também acredita que as medidas políticas de controlo da pandemia foram “tomadas nos momentos corretos”. Apesar das divergências de opiniões que surgiram entre a comunidade médica em Portugal, Cristina Marujo aponta para a dificuldade da tomada de “decisões transversais e de normas comuns”, nem sempre adequadas à realidade e gestão específica de cada hospital do país. “Não foi fácil tomar decisões numa situação que era nova para toda a gente e que causou um desgaste enorme para todos aqueles envolvidos no terreno, incluindo aqueles que tinham que decidir e dar as ordens”, considera a diretora.

No interior do Hospital de São João, a diretora do serviço de urgências realça o cansaço, a incerteza e o afastamento entre famílias como fatores que resultaram num “desgaste enorme” entre os profissionais de saúde,  desgaste este contrabalançado por aquilo que descreve como um “movimento otimista fantástico”. A médica revela que foram vários os profissionais que se voluntariaram para trabalhar no serviço de urgências. Desde ortopedistas até médicos de cirurgia plástica ou de neurocirurgia, “havia muita gente na linha da frente que já não via um doente que tossia ou com falta de ar há muito tempo”, aponta a diretora, que considera a relação de solidariedade testemunhada entre os profissionais de saúde como uma “lição” retirada da pandemia. 

Hospital de São João, Wikipedia Commons, Reis Quarteu 

Para Cristina Marujo, o Sistema Nacional de Saúde (SNS) sai mais fortalecido da pandemia. Ela entende que “tudo aquilo que seja destinado a servir tanta gente, em domínio público, com gastos nulos ou mínimo por parte dos seus utentes, terá deficiências”, e relembra que Portugal não é um país com “facilidades económicas”. Segundo a médica, fortalecer o SNS não passa exclusivamente pelo seu financiamento, mas também pela criação de “estruturas e formas de funcionamento” que melhorem a qualidade e eficiência do sistema de saúde português. 

A profissional de saúde acredita que a pandemia veio também valorizar o papel do médico em Portugal, principalmente pela população, mas lamenta a postura atual de alguns utentes mais críticos. “Custa querer que alguma daquela população que nos aplaudiu e que foi fantástica no início da pandemia se tenha esquecido tão rapidamente desse apoio”, admite Cristina Marujo, sublinhando alguns casos de maus tratos aos profissionais de saúde. 

“Obviamente que não conseguimos fazer tudo bem. Alguns profissionais vão ser mais despachados do que outros e às vezes o tempo de espera vai ser muito grande, mas nós não conseguimos chegar a toda a gente ao mesmo tempo. As pessoas não têm essa noção”.

Cristina Marujo

Segundo a diretora das urgências, a comunicação da informação relativa à pandemia foi um dos aspetos que falhou junto da população. “Temos uma população envelhecida com uma iliteracia muito grande em termos de saúde”, considera a médica, que apesar de notar a facilidade da população mais jovem em aceder a vários tipos de informações online, demonstra-se igualmente preocupada com a disseminação de informações falsas na web. “É preciso mais em termos de literacia de saúde, claramente”, entende a doutora, ao temer que medidas de combate e prevenção aplicadas durante a pandemia serão facilmente esquecidas pela população: “Acredito que se vai perder aquilo que devia ter ficado, não só pelo COVID-19 mas por outras doenças, como o uso máscara quando estamos com tosse ou com febre, o que é uma pena”.

Hospital de São João, Wikipedia Commons, Reis Quarteu 

Para a médica, foram vários os ensinamentos que o combate à pandemia trouxe ao Hospital de São João, desde a necessidade de reconfiguração de alguns espaços físicos até à utilização das novas tecnologias “noutros contextos”, como nas consultas e internamentos. “De facto, hoje conseguimos fazer coisas que antes não fazíamos, e nesse aspeto, isto foi não só uma ajuda como um ensinamento”. 

Já pessoalmente, Cristina Marujo acredita que “a forma como as pessoas se conseguem ajudar” foi uma das suas maiores aprendizagens durante a pandemia. “A fase inicial da pandemia foi muito complicada emocionalmente. Estávamos assustados, não sabíamos como é que as coisas iam correr para a população e também entre o nosso grupo de profissionais”, reconhece a diretora, “mas a forma como os profissionais se organizaram para poder ajudar quem estava doente, essa foi uma aprendizagem fantástica”. A médica realça ainda a importância que o trabalho em equipa teve no combate ao vírus na sua unidade: “O facto de trabalharmos em equipa permitiu que tudo isto acontecesse. Essa é também uma das maiores aprendizagens, perceber que sozinhos não fazemos nada e que precisamos de trabalhar em equipa para que as coisas realmente funcionem”.