Paulo Côrte-Real: ” foram décadas de luta” para que os homossexuais possam doar sangue

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Paulo Côrte-Real: ” foram décadas de luta” para que os homossexuais possam doar sangue

Foram décadas de luta para por fim à discriminação em função da orientação sexual na doação de sangue. O preconceito enraizado, marcado por uma pandemia absolutamente estruturante, o VIH, deixou marcas para sempre. Foi no passado dia 5 de Novembro que, a comunidade LBGT, nomeadamente os homossexuais, mais afetados sobre esta questão, viu esta batalha travada com o maior dos sucessos. Paulo Côrte-Real faz uma abordagem pormenorizada sobre esta temática, partilhando uma reflexão mais profunda não só sobre a doação de sangue como outras questões que ainda preocupam os homens gays. 

(Texto realizado por Catarina Lemos)

Economista, começou a traçar o seu caminho como ativista dos direitos LGBT, muito cedo, em 2001. A sua ida para os Estados Unidos, país mundialmente reconhecido pelo seu liberalismo em relação a questões de sexismo e géneros, resultou numa atenção maior ao seu redor, em termos de perspetivas sociais, no que coincidiu com a sua “perceção de si mesmo como gay”. Sentindo assim uma liberdade em sair do “armário” que, em Portugal outrora teria sentido. 

Por esta mesma razão, Paulo, entendeu que aquando do seu regresso para o seu país natal teria de “contribuir para que se pudesse respirar melhor”.

Portugal, foi um dos últimos países a agir contra as desigualdades de género e a questões relacionadas com os direitos da comunidade LGBT. Aprisionado a um padrão fortemente católico, vincado por uma das maiores ditaduras de sempre da Europa, salazarista, foi apenas no ano 2000 que saiu à rua, pela primeira vez, a “Marcha de Orgulho”.  Paulo participou, dois anos depois, dando assim o seu primeiro contributo, “comecei contribuindo para a marcha do Orgulho LGBT, mas enquanto ativista não ligado a nenhuma organização ainda.”.

“O meu contributo como ativista podia ser mais importante, ou pelo menos mais relevante ao como dou como professor de economia.”

Paulo Côrte-Real

Em virtude de todos os atrasos e a todas as lacunas existentes na legislação, o economista e defensor da causa, entendeu ser necessário haver mais trabalho e, para isso, em 2003, candidatou-se ao ILGA Portugal-Intervenção Lésbica, Gay, bissexual, trans e intersexo, no Grupo de Intervenção Política- com o intuito de tentar captar atenção das comunicações sociais para alterações legais e políticas. Um dos seus maiores desafios permanece a questão da doação de sangue por parte dos homossexuais, “são décadas de luta em relação a esta questão”.

Apenas na última década os ativistas conseguiram ter acesso à DGS (Direção Geral da Saúde) para reivindicar todas as lacunas existentes na lei portuguesa. Segundo Paulo, “não havia sequer a possibilidade de diálogo com a DGS dado à falta de reconhecimento da comunidade LGBT”. 

Foi apenas em 2010, aquando a aprovação da lei do casamento entre pessoas do mesmo sexo, (Lei n.º 9/2010, de 31 de maio) – que existiu uma mudança de paradigmas e de mentalidade em relação à comunidade LGBT, “foi preciso a luta do casamento entre pessoas do mesmo sexo para haver mudança de perceção pública sobre a relevância deste trabalho e do trabalho que havia ainda a fazer a partir de aí “, explica. 

não havia sequer a possibilidade diálogo com a DGS porque não havia reconhecimento da comunidade LGBT como sendo alguma coisa de séria”

Paulo Côrte-Real

Já em 2012, com o governo de Pedro Passos Coelho, existiu uma promessa de um estudo para rever a questão da discriminação, estudo este que nunca chegou a existir: “houve várias tentativas de tentar perceber também o grau de avanço do estudo e oferta de colaboração em relação a profissionais que estivessem a trabalhar para esse estudo – ou seja oferta- para participação não suposto grupo de trabalho que deveria existir, mas que nunca chegou a existir.”, explica o ativista Paulo. 

Apenas em 2016, com a mudança de governo e depois de anos de luta, a DGS publica uma norma regulando os critérios de inclusão e exclusão de doadores, removendo assim “qualquer referência à categoria “homens que fazem sexo com homens”, até então bastante para a exclusão no processo de doação de sangue. Porém, em 2017, a DGS, acrescentar uma alínea, a alínea b) do ponto 7 onde estabelece um período de 12 meses de abstinência sexual como condição fundamental para que potenciais dadores, “que tiveram contacto sexual com indivíduos com risco infeccioso acrescido para agentes transmissíveis pelo sangue”, possam fazer doações. Premissa esta utilizada por muitos profissionais de saúde quando se tratava de homens homossexuais tentarem doar sangue.  

Devido a todas alterações constantes na lei, Paulo, nunca tentou doar sangue. As leis eram inconstantes. “Não quero sujeitar-me a uma recusa em função da minha identidade.”

Passado quase uma década de luta, foi no passado dia 5 de Novembro que toda a comunidade LGBT pôde respirar de alívio ao ver esta batalha vencida com sucesso. O parlamento aprovou a proibição da discriminação na doação de sangue por orientação sexual. No projeto lei pode ler-se: “pode dar sangue aquele que cumpra critérios de elegibilidade definidos, de forma objetiva, clara e proporcional, e que respeitem os princípios da confidencialidade, equidade e não discriminação, por portaria do Ministério da Saúde”, reforçando ainda com “Os critérios de elegibilidade definidos nos termos do número anterior não podem discriminar o dador de sangue em razão da sua orientação sexual, da sua identidade e expressão de género, e das suas características sexuais”.

Para Paulo, este foi um passo bastante importante, “um passo de reparação”, explica: “acho que tenha havido muita injustiça e violência por parte do próprio Estado de perceber que o estado tem a obrigação de contrariar todo este período em que esteve a classificar-nos ou doentes ou de criminosos ou de pessoas que não podiam ser homens normais.”. O ativista recorda ainda que, apesar de este passo ter sido dado no país, Portugal é, infelizmente, ainda a exceção e não a regra deste tipo de acontecimentos.

“Está resolvido em Portugal, mas Portugal é exceção não é regra”

Paulo Côrte-Real

Para uma melhor perceção e entendimento do assunto, recuaremos agora umas décadas atrás, no contexto histórico e social da questão da doação de sangue por parte de homens gays -, à pandemia do VIH (vírus da imunodeficiência humana), causador do vírus da SIDA.

 O VIH surgiu em meados dos anos 80 e, foi bastante associado a homens que tinham relações com pessoas do mesmo sexo, devido aos primeiros casos de infeção da doença terem surgido em homens homossexuais, descoberto nos Estados Unidos da América. Tudo começou quando a Centers of Disease and Prevention dos Estados Unidos publicou um artigo onde falava da doença e relatava cinco casos, todos eles detetados em homens que tinham sexo com outros homens. Como, até à altura só eram conhecidos casos em homens homossexuais começaram a chamar à doença de Gay Related Imunodeficiency Disease (GRID) ou Gay Compromise Syndrome, passando, mais tarde para “Gay Plage” e “Gay Cancer”. Termos destes só deixaram de ser utilizados quando foram descobertos casos de VIH em homens e mulheres heterossexuais. 

Com isto, se já existia um preconceito por parte da população em relação a homens homossexuais esse preconceito só cresceu e, por isso, segundo Paulo, existiu um “preconceito muito promovido”.

“Com o VIH Sida e com a forma como foi uma doença cheia de estigmatização, cheia de menorização e cheia de várias vidas e determinados grupos que eram identificados como grupos de risco, e depois isso teve uma herança, teve uma herança a vários níveis” 

Paulo Côrte-Real

O povo português não foi diferente, criou também um certo paralelismo em relação à doença do VIH e aos homossexuais. Atualmente, para Paulo Côrte-Real “ainda deve haver muita gente em Portugal que faz essa associação e que acha que uma coisa está necessariamente ligada a outra.”.

Apesar da vitória, o entrevistado acredita que há ainda um longo caminho a percorrer, nomeadamente a evolução das proteções legais, “tentar alargar e evoluir as proteções legais seria importante”, e lembra ainda que “infelizmente nós todas e todos vamos aprendendo a discriminar com o apoio do Estado durante muito tempo”. Por isto, o Estado tem a obrigação de promover uma não discriminação, “este passo está a começar a ser dado, mas acho que tem que ser muito maior”.

O ativista acaba por recordar que uma das maiores formas de discriminação, ainda existentes, é o silêncio e o medo de as pessoas saírem do armário, “porque essa continua a ser uma grande forma da discriminação o silêncio e o medo se as pessoas são de alguma maneira incentivadas a sair do armário” e que continua a existir sempre o pressuposto do outro lado de que a pessoa é heterossexual – a sociedade devia ser reeducada sobre estes assuntos. O entrevistado realça ainda o facto da importância do estado se juntar ao setor privado nesta luta: “é preciso uma educação sólida sem estas resistências que ainda vemos precisamos que o estado mobilize o setor privado porque o estado sozinho tem algum impacto mas limitado…outro lado que me parece bastante importante são os órgãos de comunicação social. “.

“Acho que o preconceito vinga sempre que há silêncio”

Paulo Côrte-Real

Paulo acredita que a comunicação social tem o poder e o dever de fazer chegar as vozes dos silenciados a quem as precisa de ouvir, identificando esses silêncios, reeducando a sociedade para estes assuntos, tendo assim um cunho mais pedagógico. 

Catarina Lemos

Olá, chamo-me Catarina Lemos e tenho 20. Sou estudante finalista do curso de Ciências da Comunicação, na Universidade Lusófona do Porto. Desde pequenina que sou apaixonada por comunicação, sempre fui muito faladora. Decidi seguir este curso e esta área, o Jornalismo, por querer dar voz e " palco" a quem muito tem para nos dizer e ensinar.