Rua de Santa Catarina é um espetáculo aberto a todas as pessoas
[Texto de: Ana Cláudia Fernandes, Mariana Oliveira, Raquel Valente e Vanessa Sousa]
Todos os artistas precisam do público que a covid-19 retirou das ruas. Movidos pela paixão e pela necessidade, os artistas continuam a atuar para cada vez menos aplausos e ganhos. A região norte de Portugal recebe todos os dias artistas de rua, mas a covid-19 veio modificar toda a estrutura. A cultura foi afetada negativamente e teve um forte impacto na permanência e atuação de pessoas com talento na rua.
Pedro Kennedy, de 24 anos e Lucas Couto, de 30 anos, têm raízes brasileiras e são cantores e guitarristas. Atualmente mostram o seu talento na artéria comercial da Baixa do Porto.
“Realmente complicou bastante a vida de muitos músicos, pois estamos habituados a tocar num horário mais estendido durante o dia, tarde ou noite” confessa Pedro com alguma tristeza.
Ao contrário de Pedro, Lucas Couto iniciou o seu percurso artístico na rua há sete meses. Desconhece a situação pré-covid, no entanto mostra-se apreensivo com a redução de pessoas na invicta.
Andam menos pessoas na rua e agora estamos na altura de Natal, seria ótimo para o meu trabalho. Ajudar-me-ia a ganhar mais dinheiro.
Carlos Cepinha tem 33 anos, é natural de Lisboa e músico de jazz. Além disso, faz parte dos artistas de rua que viram o seu talento ser menos apreciado, devido à redução de pessoas na rua.
Se ainda houvesse movimento que permitisse a atuação de vários artistas, seria diferente. Assim ficamos muito limitados.
O empurrão da arte para a rua
Foi aos 25 anos, após ingressar no curso de guitarra clássica e mais tarde no curso de jazz, que a rua acolheu o talento do jovem Cepinha. Porém, logo revelou sentir algumas dificuldades financeiras que o levaram a espalhar o talento perante um público que não conhecia.
Houve alturas que para eu ir tocar com a escola tinha de saltar refeições. A turma ia quase toda ao McDonald ‘s ou a outro sítio e eu nem sequer podia comprar nenhuma refeição. Levava uma sande de casa.
O lisboeta iniciou o seu percurso na rua, a sul de Portugal, no Algarve. Em Lagos, começou a tocar publicamente com “um saxofonista” da sua turma. “Ele já tocava na rua com outro amigo que era trompetista. Nós conhecemo-nos no curso e começámos a tocar juntos”, afirma. Mas foi há cinco anos que a Invicta chamou por ele. Nutre um sentimento de felicidade pela rua, “foi onde realmente me relacionava melhor com os negócios locais. Sentia que as pessoas davam mais valor àquilo que estava a fazer”, conta Cepinha após explicar o início do seu trajeto profissional pelas ruas do Porto.
A zona onde Carlos toca é relevante para a sua exposição enquanto músico, por ser uma das maiores ruas de comércio local no Porto, com diversos turistas e também pela presença do emblemático Majestic Café. “O Majestic Café tinha uma enorme afluência de pessoas fanáticas por jazz e isso fazia com que soubessem apreciar a música que estava a tocar”.

fotografia cedida pelo entrevistado
As questões financeiras também se apoderaram do artista brasileiro. Lucas mudou-se do Brasil para Portugal há um ano e a escassez de dinheiro começou a “falar mais alto”. Após a mudança da América do Sul para a Europa, teve uma proposta de trabalho “num navio de cruzeiro”, mas ficou suspenso por consequência da pandemia. Lucas tomou a decisão de começar a tocar na rua, muito por influência da sua mãe. Além de tocar na Rua de Santa Catarina, a Baixa do Porto e a Rua das Flores também são outros palcos seus.

fotografia cedida pelo entrevistado
Por outro lado, Pedro esclarece que a cidade portuense foi o primeiro sítio onde começou a tocar na rua. “Quando cheguei aqui, encontrei amigos que me incentivaram a tocar na rua. É incrível, gostei muito, desde que comecei”, exprime.

fotografia cedida pelo entrevistado
Para que seja possível mostrar o talento na rua, o artista tem de ter em sua posse uma licença. Esta permite a legalização da arte e faz com que o mesmo escolha o espaço público onde vai tocar. Existe um conjunto de regras, com base no respeito mútuo, que regulam a atividade. No entanto, não existe um preço estipulado da licença, pois este depende do local público que o artista decide escolher para atuar. A resposta prévia parte da tesouraria da Câmara Municipal do Porto e o prazo da resposta é curto.
A veia artística: o início do percurso
Dois dos artistas começaram o seu percurso artístico através da influência de amigos e familiares, enquanto que Lucas não teve influência de nenhum familiar. Cepinha e Pedro começaram a gostar de música através do ambiente vivido em casa. “Punha discos dos Queen, Led Zeppelin e bandas de Rock do tempo dos meus pais”, conta o lisboeta.
“Desde criança sempre tive uma paixão pela música, também por ter irmãos músicos e isso fez e faz parte da minha vida”, expressa Kennedy. Hoje, adulto, compõe músicas e comercializa-as para estúdios e outros cantores. Considera-se um músico diversificado: “as minhas inspirações são variadas. Inicialmente era mais ligado ao rock, depois fui aliando-me mais ao pop e agora tenho uma vertente muito mais próxima ao pop”.
Mas nem todas as famílias têm veia artística. Lucas considera-se uma pessoa autodidata, pois aprendeu música sozinho e apesar de ser licenciado em cinema e audiovisual, as melodias e sons à sua volta, sempre foram o seu maior sonho. Para ele, Milton Nascimento (cantor, compositor e multi-instrumentista brasileiro, reconhecido mundialmente como um dos mais influentes e talentosos músicos da Música Popular Brasileira) é a sua maior inspiração a nível musical.
O mundo artístico das críticas aos elogios
Com oito anos de experiência a tocar para todo o tipo de pessoas, Carlos Cepinha sente que o artista de rua passa por experiências incríveis e outras menos agradáveis. Expõe que mostrar a arte na rua “ajuda a financiar a própria atividade” e pretende educar o público, “porque as pessoas não estão habituadas a este tipo de música que é o jazz”.
Além disso, são constantes as críticas que recebe, nomeadamente no início da sua jornada. “Havia pessoas que diziam que ia tocar para a rua, porque não sabia fazer mais nada. A minha própria família não é exceção”. A aceitação pela família não foi imediata. “Os meus pais gozavam comigo mesmo quando já tocava profissionalmente. Mesmo que eu ganhasse mais dinheiro do que eles, diziam-me que eu andava a brincar às guitarras e armado em artista”.
Cepinha reconhece que a carreira artística por vezes tem fases menos boas e que “há sempre um estigma muito grande”. No entanto, sente que é um sortudo por conseguir viver da música nestes últimos oito anos.
Pedro Kennedy considera a receção do público em geral positiva e alega que sempre foi “muito bem recebido, mas obviamente são visíveis alguns olhares”. Já no seio familiar, a reação é de igual forma positiva. “Amam o facto de estar a mostrar o meu trabalho como uma vitrina ali na rua. Incentivam-me muito. Isto para mim é uma experiência incrível, então eles apoiam-me”.
Para Lucas Couto, a melhor reação é a das crianças, que “não têm filtro. Param e ficam a olhar. Começam a rir e dão ́tchau ́, eu acho legal”. Contudo, confessa que, ainda assim, é percetível algum preconceito por ser brasileiro.
A diversidade de reações das pessoas é grande. Um exemplo disso são os comerciantes locais, que acreditam que os artistas de rua ajudam no desenvolvimento do negócio, pois permitem uma maior atração de cidadãos até as ruas. A demonstração de talento é motivo de entretenimento e captação da atenção dos turistas.
A cidade do Porto é considerada Património Cultural da Humanidade desde 1996 e voltou a ser eleita Património Mundial em Portugal, pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Isto acontece devido aos grandes monumentos implementados pelo centro histórico da invicta (Catedral da Sé do Porto, Igreja e Torre dos Clérigos, Estação de São Bento, Igreja de São Francisco, entre outros), mas também é consequência da enorme afluência de turistas, tendo a última década registado um aumento de cerca de um milhão de visitantes.
A atração turística envolve vários fatores além do valor cultural. A beleza, a originalidade e a diversão são outras razões que ajudam a captar a atenção. Os artistas de rua são exemplos disso, porque passam horas a tocar para um público diversificado, sujeitos a elogios e críticas. Para angariar algum dinheiro e apresentarem o seu trabalho, estão suscetíveis a condições precárias, como clima chuvoso ou excesso de calor.
Criar laços de amizade na rua
O artista de rua nem sempre é valorizado. Há pessoas que olham a animação de rua como um hobby, no entanto, os três artistas consideram-na uma profissão. É de fácil acesso e está disponível a um público diversificado.
Todavia, Carlos Cepinha conta que “há músicos que tentam convencer os principiantes a desistirem quando entram em dificuldades. Há certos músicos que quando caem no mercado só querem as oportunidades todas para eles”. Queixa-se da existência degrupos que tentam controlar os melhores lugares para tocar, tornando-se um círculo vicioso. “Quando se fartam daqueles sítios vão para outros, fazem a mesma coisa e as pessoas que estão nesse sítio é que ficam afetadas”.
O mesmo não se aplica a Lucas, que acredita nas amizades que fez com colegas de trabalho. Porém, tem consciência que existe sempre competição, “a maioria das vezes é saudável, tirando um ou outro. Há sempre problemas, mas acho que é como se fosse em qualquer outra profissão”.