Portugal de “Minho até Timor”: O retorno sem retornar
- Inês Lopes Costa
- 08/07/2022
- Grande Reportagem Portugal
Meio milhão é o número de pessoas que chegaram a Portugal entre o verão de 1974 e o ano de 1975 das antigas províncias ultramarinas. Passados 47 anos são muitas as histórias que ainda são contadas sobre as vivências nos tempos em que Portugal era de Minho até Timor e sobre o retorno, por vezes sem retornar a Portugal Continental depois do 25 de Abril.
[Reportagem de Inês Costa]
“Fiz a casa, por baixo, e depois, por cima, fiz uma placa grande, fiz uma coluna em cada canto, depois cobri por cima, muro em toda a volta e ficou assim meio metro em toda a volta aberto. Em toda a volta. Depois, a minha mulher, cozinhava muito bem, fazia lá casamentos, batizados e dava ar, era fresquinho,que era uma maravilha.” É desta forma pormenorizada que Bernardino Veloso de 92 anos descreve uma das casas que construiu em Angola, nos tempos em que “Portugal era de Minho até Timor”. A palavra “maravilha” seguiu-se, em segundos, de uma das recordações mais marcantes para Bernardino e a sua família: “Depois, olha fugimos, e aquilo ficou lá.”
Poucos minutos depois, numa conversa, na ponta da mesa da sala, Bernardino, o filho Abraim de 53 anos e a nora, Fátima Veloso de 50 anos, que apesar de não ter estado em Angola, recorda-se das histórias que a família foi contando, completam a história:
“Fátima: Entretanto começou lá a guerra.
Bernardino: Nós deixamos ficar e fugimos.
Fátima: Quem tomou conta da sua casa, como aconteceu isso? Os tropas?
Bernardino: Antes de deixarmos a casa, a tropa, como aquilo era aberto em toda a volta, então tomaram conta daquilo e ela não pode cozinhar mais. Antes já o povo andava, já havia brancos mortos, aqui, acolá, mata brancos, mata brancos.Entrou por lá uns fiscais, nem pediram nada a mim,meteram-se lá.”
Fátima: E eles de quem eram?
Abraim: Do Savimbi, da UNITA.
Bernardino: Tomaram conta daquilo. Era aberto por todos os lados e eles viam para todos os lados. Tomaram conta daquilo uns poucos de dias.”
Bernardino Veloso, Abraim Veloso, Fátima Veloso
Em 1951 é feita uma Revisão Constitucional e o Ato Colonial é revogado. Tanto o território português, como as colónias ficam abrangidos pela mesma lei. Neste sentido, o conceito de colónias é substituído pelo de província e o de Império, pelo de ultramar. As colónias eram uma extensão do território continental. |
Foi com poucas palavras que a “casa maravilhosa” ganha, de repente, uma conotação de medo e insegurança e conta a história de uma família.
Manuel Costa de 68 anos e Helena Costa de 64 são mais uma família que “veio embora e abandonou”. A “insegurança entre eles, eles aos tiros uns com os outros” foi a razão, explica Manuel, acrescentando ainda que “há muitos que arriscaram e ficaram lá e não houve problema nenhum. E nós fomos uns que não, vamos embora, vamos nos deixar disso.”
Apesar da rapidez com que o tiveram de fazer, ainda conseguiram trazer coisas de casa.”Embalamos em malas e veio coisas com o barco. Nós só tínhamos as coisas de casa. Nós não tínhamos nada. O dinheiro de lá para cá também não tinha valor nenhum”.
Bernardino, Abraim, Helena e Manuel são quatro dos meio milhão de pessoas que chegaram a Portugal entre o Verão de 1974 e o ano de 1975 e que passaram a ser chamados de Retornados.
Retornado, palavra “qualificativa” usada para falar de pessoas vindas de África, das antigas províncias ultramarinas, para Portugal, após a revolução do 25 de Abril.
Retornado do verbo retornar que, como Manuel Costa diz “era o retorno das pessoas. O vir para cá.”
Retornado, palavra que, para algumas pessoas, encontra-se desenquadrada da realidade, nomeadamente das que não regressavam ao seu país, mas vinham, pela primeira vez, para um país que nunca tinham estado, Portugal.
“A maioria nasceu lá e veio para cá. Muitas pessoas que estavam lá, que vieram, não eram portuguesas, eram já de Angola, filhos de portugueses, que também vieram para cá”, sustenta Manuel, como é o caso de Abraim Veloso que explicou “eu sou angolano, eu nasci lá.”
Retornado, palavra nacional, internacional, conhecida por todos, usada no passado e presente que serve para descrever o “exercício de todos, os que vieram, os que nunca tinham vindo, os que ficaram” como explica Elsa Peralta, antropóloga, numa reportagem publicada pelo Diário de Notícias.
Retornado, palavra criada e aplicada durante o processo de descolonização das antigas colónias portuguesas, que se foca, exclusivamente, na chegada à “metrópole”. No entanto, retornado é uma pessoa com um antes, um durante e um depois da descolonização, que vai além do próprio termo.
Passados 48 anos da Revolução dos Cravos e 47 desde o ano da maior avalanche de pessoas que Portugal recebeu, há muitos antes, durante e depois que continuam a ser histórias que ainda não foram contadas.
Então, qual é o antes, o durante e o depois de Helena, Manuel, Bernardino e Abraim?
Bernardino Veloso trabalhava há 20 anos na Mabor, empresa de pneus em Lousado, Vila Nova de Famalicão, quando o seu sogro, já viúvo, decide ir para Angola. A sua esposa, Dulcínia Silva, não queria que o pai fosse sozinho, então o casal decidiu ir também. Bernardino recorda-se que “não queria ir, mas para fazer a vontade à mulher fui com ele.”
Foram para Angola, para Prenda, em 1966, e lá permaneceram até 1975.
Durante os dois primeiros anos Bernardino trabalhou para o sogro como distribuidor de sal. Mais tarde empregou-se no Agrupamento do Serviço de Material de Angola (ASMA), local onde trabalhava com material de guerra. “o mesmo tempo, nas horas vagas, fazia uma casitas e vendi-as”.
A sua mulher cozinhava muito bem então acabou por ter um restaurante em casa onde fazia casamentos, batizados e mais tarde refeições diárias para pessoas de uma fábrica.
Abraim Veloso nasceu em Angola, tendo vivido lá até à idade de vir para a escola primária, sendo então escassas as memórias.
A história de Manuel e Helena, também em Angola, tem um começo diferente.
Manuel andava a estudar quando surgiu a oportunidade de migrar. Foi em outubro de 1971. Chegado lá arranjou um emprego como “técnico de comunicações.”
Durante uma vinda a Portugal para passar férias, Manuel e Helena decidem casar e ir para África. Partem, assim, novamente em outubro de 1974, para Luanda, cidade onde alugaram casa e onde Helena arranjou emprego na Central Automática.
A vida em casal em África acabou por durar pouco tempo, pois regressaram a Portugal em agosto de 1975.
“Porque é que eu cheguei cá, casei e levei-a?Pela qualidade de vida que lá tinha”
Manuel Costa
Apesar de vidas totalmente distintas têm em comum a mesma opinião, em Angola tinham uma qualidade de vida melhor que em Portugal.
“O viver em Angola, sinceramente, era bom, era ótimo”, foi assim que Manuel começou a descrever a sua vida lá.Mais à frente acrescenta “ vivia-se melhor em Angola, do que se vivia em Portugal. Tínhamos tudo. A qualidade de vida era superior à de cá” e acaba mesmo por dar o exemplo de que “cá, um trabalhador ganhava seis contos, por exemplo, tu lá ganhavas 16/20 contos.”
Abraim não tem muitas memórias desse tempo devido à tenra idade com que lá viveu, mas recorda-se que os pais lá tinham uma qualidade de vida melhor que em Portugal, diz mesmo, “tinham uma qualidade de vida muito melhor mesmo. Os meus pais lá estavam bem”, mas não deixa de sublinhar que eles “também trabalhavam”.
A qualidade de vida que é descrita por todos vai além do dinheiro que se recebia sendo migrante e passa, essencialmente, por aquilo que o próprio país tinha para oferecer.
“A agricultura dava duas vezes por ano” dizia Manuel e, num discurso não planeado, nem ouvido por nenhum dos dois, Bernardino complementa contando histórias sobre a qualidade da terra. “Plantei lá duas bananeiras e tratei delas. Deu um cacho tão grande, tão grande, que uma pessoa não podia com ele” recorda, explicando ainda que “lá é calor e húmido” e é isso que permite a terra dar tudo.
Havia ainda uma forte vantagem: “as terras não eram de ninguém”, o que significa que qualquer pessoa podia apropriar-se de um terreno desde que este estivesse livre. Após ocuparem e colocarem algo lá, por exemplo, uma vedação, este passava a ter dono.
“Depois noutro sítio, num quintal grande, um murinho em toda a volta,com entrada,passado uns dias, que eu era para fazer lá uma casinha. “Oh Berardo, ali um homem dá-te 20 contos por aquele terreno que tu vedas-te” Ali não há escrituras a fazer, é só palavra e mais nada. E eu achei que era bem pago e eu: “Está bem, pode entregar”, depois deu-me 12 e ficou com o resto.”
Bernardino Veloso
Foi assim que Bernardino conseguiu, também, construir quatro casas. Encontrando terrenos disponíveis e construindo em cada um, sozinho, nos tempos livres e com as possibilidades que tinha. Duas delas alugou, uma outra é a casa, que mais tarde, devido à sua arquitetura e localização, é invadida pela UNITA e por último, uma mais fraca, onde chegou a plantar as duas bananeiras.
A par das zonas mais rurais existiam as cidades, as grandes cidades, que tantas regalias ofereciam. Manuel recorda-se dos cinemas que “eram ao ar livre, eram fechados, mas à noite tinhas na mesma esplanadas, tinhas lá uns painéis enormes e estavas lá a ver cinema” e do “sair de casa de chinelos,toalha às costas, por ali fora, pelas avenidas e pelas ruas e vais para as praias”.
Helena e Manuel falam da edificação da cidade, que em nada se comparava à zona de Portugal de onde são. “Chegavas lá naquela altura, cá não, cá tu tinhas casinhas, mas chegavas lá era cada avenida, era cada prédio” explicam. Helena Costa recorda que o prédio onde viviam tinha “ 300 e tal apartamentos” e o marido acrescenta que tinha, também, quatro elevadores e um monta-cargas, um elevador enorme.”
A própria população que vivia lá, segundo Manuel Costa, “era mais evoluída”. A esposa recorda-se da prática de “bodyboard,coisas que se fazem aqui, agora. Há 40 anos lá já se fazia isso”. A “formação das pessoas” também contribui para essa evolução. Manuel explica que “lá praticamente tudo estudava. Lá praticamente tudo tinha o 7ºano”.
Se era em todo o país assim, desconhece-se, mas a realidade é que foram muitos os portugueses que estudaram lá e, há casos de pessoas, nomeadamente Dulcínia Silva, esposa do senhor Bernardino, que acabaram por fazer lá, já em idade adulta a escola primária.
A formação, quer feita em Angola, quer em Portugal antes de ir para África e a possibilidade de desenvolver mais a componente prática em qualquer área de trabalho fazia com que houvesse “mão de obra especializada”. Manuel Costa , hoje, reflete sobre isso e diz que “se estivesse cá, nunca saía da cepa torta e não me especializava no que especializei”.
A rede de transportes também é, ainda hoje, lembrada, principalmente por Manuel que, devido à sua profissão, tinha várias vezes que se deslocar entre as cidades. Fazia-o muitas vezes “ de carro ou de avião” ou então comboio, relembrando-o como um luxo, em viagens que fez a cidades como de” Sá de Bandeira para Benguela e Lobito e às vezes Nova Lisboa” em comboios com cama, “porque a distância era muito grande”.
“E os comboios tu pagavas. Querias um comboio com cama, pagavas o bilhete e ias para a carruagem e tinha só o teu compartimento de cama, como aqui, como era antes.”
Manuel Costa
Viver em Angola era também ter presente a mistura de várias etnias, mas em ponto algum, isso era notado. “5 estrelas” é assim que Abraim define a convivência entre todos, “não se olhava a cor, nem se passava isso pela ideia. É tudo igual”, complementa Manuel, novamente num discurso não planeado e não ouvido por ambos.
Portugal já não é de “Minho até Timor”. É Portugal Continental e arquipélagos dos Açores e da Madeira
“Inês Costa:Vocês vieram em agosto de 1975 porque o clima já não dava para estar lá?
Manuel Costa:Não dava porque havia guerrilha entre eles e nós estávamos no meio e não era nada connosco.Eles que se matassem e muita gente veio embora. A gente veio embora e abandonou.”
Antes da Revolução do 25 de Abril já o fracasso militar de Portugal na Guerra do Ultramar era sabido. A exigência dos movimentos independentistas no reconhecimento da independência, na transferência dos poderes, sem qualquer ato eleitoral, era cada vez maior. A par da pressão fortuita da Guerra existia ainda a pressão da Organização das Nações Unidas (ONU) e dos países da Organização da Unidade Africana no processo de descolonização. A estes fatores junta-se ainda a necessidade de trazer de volta a Portugal Continental, no pós 25 de Abril, os militares para que internacionalmente não houvesse dúvidas de que Portugal era, agora, um país democrático e anticolonial.
Tudo isto desencadeou o início da descolonização e fez com que o lema implementado por António Oliveira de Salazar, “Orgulhosamente sós”, desaparecesse.
A independência da Guiné inicia-se a 1 de Julho de 1974 dando legitimidade ao Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde(PAIGC) para assumir o poder. A assinatura do acordo de Argel entre 25 e 29 de agosto reconheceu a nova República. O mesmo acordo acaba por reconhecer a independência a 5 de junho de 1975 de Cabo Verde.Um mês mais tarde, 12 de julho de 1975, o poder em S.Tomé e Príncipe é entregue ao Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP).
Enquanto a independência na Guiné, Cabo Verde e S.Tomé e Príncipe foi feita pacificamente, Angola e Moçambique foram países extremamente complicados, tanto nas negociações da independência com Portugal, como mais tarde no poder político do país. O clima de grande tensão, principalmente após o início das Guerras Civis, impulsionou a vinda repentina das pessoas para Portugal.Foram precisos anos até se conseguir, finalmente, a paz.
Em Moçambique, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) foi o movimento reconhecido como representante do povo africano, porém outras organizações políticas começaram a contestar esta exclusividade.
A celebração do governo português a 7 de setembro de 1974 do Acordo de Lusaca, que terminou a guerra e iniciou o processo de transição, agravou a situação e levou à formação da Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), um grupo de resistência armada.
Iniciou-se uma Guerra Civil que perdurou até outubro de 1992. A paz só é oficializada quando se realizam eleições livres, em 1994, das quais a FRELIMO saiu vitoriosa.
Se a situação em Moçambique foi atribulada, Angola conseguiu ser ainda “pior”.
“Chegou-se a um ponto, deu-se o 25 de Abril, Portugal achou que devia entregar aquilo a um dos partidos, que eram três, e foi a partir daí que houve guerra entre eles. Porque a Guerra depois do 25 de Abril era uma guerra não contra os portugueses, mas sim entre eles. Portugal entregou ao MPLA.
Manuel Costa
A Guerra Colonial tinha despertado em Angola três movimentos políticos contra a dominação colonial portuguesa:Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), Movimento de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA).
A 15 de Janeiro de 1975 dá-se a assinatura do Acordo de Alvor que legitimou os três movimentos como representantes do povo Angolano e marca-se a independência para dia 1 de novembro de 1975. Planear-se-ia então a formação de Forças Armadas integradas e a organização de eleições para uma Assembleia Legislativa Partidária.
Lembro-me quando a gente ouvia um estouro maior, um tiro, ou uma bomba ou qualquer coisa, nós enfurravamos todos debaixo da cama.
Abraim Veloso
Nada disto aconteceu. Inicia-se em Maio o confronto entre MPLA e a FNLA, movimentos preponderantes no Norte de Angola. O início do conflito contou com a URSS em apoio do MPLA e dos EUA, via Zaire, em apoio da FNLA, que confrontavam-se na Guerra Fria. Mais tarde, conta com a intervenção de outros países da Europa de Leste, de Cuba e do Congo, em apoio do MPLA, e a intervenção da África do Sul, Zaire e EUA em apoio da FNLA e da UNITA que, entretanto, também inicia a luta armada.
A guerra civil leva à formação de dois governos, o da República Popular de Angola, do MPLA, com sede em Luanda, sob a presidência de José Eduardo dos Santos, e o da República Democrática de Angola, da UNITA/FNLA, com sede no Huambo, sob a presidência de Jonas Savimbi.
Abraim Veloso recordando-se das poucas memórias que tem explica a divisão do terreno entre MPLA e UNITA na sua área de residência. “No centro de Luanda era o MPLA e nos arredores era a UNITA. E a UNITA queria entrar no centro de Luanda, então ali, era onde havia os conflitos todos.”E foi, num lapso, que de repente a casa onde viviam torna à conversa e contínua a descrição do conflito. “Eles ficaram com a casa do meu pai. Era um ponto de vigia para eles e nós estávamos ali, entre o MPLA e a UNITA.”
Uma história, uma lembrança “Um taxista que a UNITA mandou parar, mesmo em frente à nossa casa. A conversa não sei, porque a gente estava a espreitar cá fora do portão, sei que eles tiraram-o à força e ouvia-se as botas mesmo a bater na cabeça. Pum!Pum!Pum! Isso ficou gravado. E mataram-o ali ao pontapé e depois a minha mãe veio, nós fugimos outra vez para dentro de casa.” Abraim Veloso |
O Estado Português, em fevereiro de 1976, reconheceu o governo do MPLA para governar.
Angola transformou-se em poucos meses num terror para milhares de pessoas e tinham de “ vir embora o mais depressa possível”, explica Manuel. Com o 25 de Abril o governo português retira “as tropas. Todos para casa. Depois viraram-se mata branco, mata branco. Tivemos de fugir todos”complementa Bernardino. A morte passou a ser cenário habitual. Em qualquer sitio “haviam pessoas mortas no chão. Mulheres e homens mortos.”
O rumo dos acontecimentos levou ao retorno de Angola para Portugal de 290 mil 504 retornados, dados retirados de uma reportagem publicada pela Comunidade Culta e Arte.
Portugal decidiu iniciar um plano de repatriamento aéreo para todos os que quisessem sair de Angola até ao dia da independência.Para tal, e segundo essa mesma reportagem, foram definidos como pontos de transporte os aeroportos de Luanda, Nova Lisboa e Sá da Bandeira.
“Tudo tinha de vir embora o mais depressa possível antes da independência. E, como foi antes da independência, o que acontece? Puseram-se a fazer aviões, puseram aviões a fazer transporte aéreo, a vir de lá para cá.”
Manuel costa
O transporte via marítima também foi utilizado, como é o caso de Bernardino Veloso e a sua família.
Em 1991 celebra-se em Angola o acordo de paz e realizam-se as eleições livres previstas no Acordo de Alvor.O MPLA ganha, mas a UNITA alega fraude nas eleições e o conflito continua até 1997, ano onde se consegue celebrar uma nova situação de paz. No entanto, Jonas Savimbi recusou-se a fixar residência em Luanda, prolongando assim o conflito por mais anos. Tudo termina em 2002 quando o líder da UNITA é morto e a acalmia em Angola passa a ser possível.
Abraim Veloso, em 1991/1992, volta a Angola em trabalho e recorda-se de aquilo na altura estar “um bocado bravo entre eles” chegando a ver “corpos no chão”. Relembra mesmo momentos em que via “gajos inchados do sol e eles pegavam neles, deitavam dentro do contentor do lixo e o camião do lixo passava, carregava o caixote.”
O começo sem qualquer retorno de uma vida passada
“Inês Costa: O que foi mais difícil quando chegaram cá de fazer?
Helena Costa: Começar a vida de novo.
Manuel Costa: Começar a vida de novo.”
Começar de novo. Foi isto que “os que vieram” e os “nunca tinham vindo” tiveram de fazer. Crianças, adultos e idosos. Pessoas de todos os gêneros, origem e possibilidades económicas. Todos tiveram de começar de novo. Mesmo que sem grandes bagagens,quem vinha trazia um peso maior, o da incerteza do que seria dali para a frente.
A chegada a Portugal de milhares de pessoas levou à criação do governo português, a 31 de março de 1975,do Instituto de Apoio ao Retorno dos Nacionais (IARN), que tinha como objetivo, tal como o próprio nome indica, apoiar os retornados. É nesta sequência de ideias que a palavra retornado ganha mais uma definição, a “institucional”, como disse Elsa Peralta numa reportagem publicada pelo Diário de Notícias.
Elsa Peralta numa entrevista dada ao jornal Setenta e Quatro explica que “ Houve programas de habitação, empréstimos a fundo perdido, apoio para a criação de empresas. Houve dinheiro, montes de dinheiro, para a integração das pessoas.” Surgiram também iniciativas e entidades que os apoiaram. Estes apoios ajudaram no recomeço de vida das pessoas, mas não o tornaram fácil até porque as condições a que as pessoas chegavam eram diferentes umas das outras. Pessoas sem nada ou apenas com algumas coisas, pessoas com familiares, amigos e conhecidos cá prontas a ajudar e outros sem.
Manuel Costa e Helena Costa quando regressaram a Portugal puderam contar com o apoio da família para recomeçar, mas não esquecem que “muitos que vieram para cá, não tinham família”, explica Manuel. Helena complementa o discurso “ Iam para sítios, para o IARN” até terem as condições para serem independentes e começar a vida.
Como é o caso de Bernardino Veloso e a sua família. “Primeiro quando viemos de Angola estivemos num pavilhão. Estivemos quase 15 dias”explica Abraim. Depois foram para uma casa porque “ tínhamos ordem do governo, pós isso nos jornais, quem tivesse casas de vago tinham de as entregar a quem precisasse. Vieram muitas famílias para aqui e chegaram aqui e não tinham para onde ir. E nós ao vir, vimos uma casa livre em Famalicão, grande. Metemo-nos ali, naquela casa, três famílias.”
Aos poucos e poucos foram encontrando a estabilidade. Manuel conta que pouco tempo depois de chegar a Portugal arranjou emprego. Caracteriza isso como fácil visto “ser uma mão de obra especializada”. Também para Bernardino bastou “um, dois dias para ir trabalhar para o irmão Matias do Seminário de São Tiago de Antas”, nos Missionários Combonianos.
Tempos mais tarde, Bernardino começou a construir novamente o seu lar, desta vez em Portugal e retrato-o novamente de forma tão pormenorizada, como se alguém o tivesse a desenhar enquanto ouvia a discrição
“ Comprei o campo por 100 contos, vedei-o, já estava mais ao menos vedado, mas vedei-o melhor.Fiz casa do gado, fiz a eira, fiz tudo, fiz um poço, para ter água com força. Chamei um homem que tinha uma máquinas, escolheu-me os sítios que tinha melhor água, fiz um poços com umas argola largas. Fiz um poço bom, fiz tanque à beira, fiz casa do gado,fiz a eira, fiz tudo,fiz casa para viver.Depois vendi o campo por 30 mil. Comprei o campo por 100 contos vendi-o por 30 mil. Mas tudo feito pela minha mão. Casa, tudo feito pela mão, não chamei ninguém.”
Bernardino Veloso
Tudo isto desencadeou nas pessoas residentes em Portugal vários sentimentos. Muitos reagiram bem,outros não e houve ainda quem não reagisse. De uma forma ou de outra os retornados sentiram o que os portugueses lhes demonstraram.
Helena e Manuel foram bem acolhidos, mas lembram-se de pessoas que sofreram atitudes preconceituosas “porque o governo dava tudo ao retornados, dava dinheiro, para ajudar eles entranhar-se, porque chegavam cá, não tinham dinheiro, não tinham nada” explica Manuel. Nem só de apoios económicos advinha o preconceito, mas também de outras ajudas desenvolvidas na altura. Abraim, em diálogo com o pai, recorda um desses momentos, vivenciado por Dulcínia Silva, mãe.
“Lembras-te de a mãezinha concorrer quando foi empregada da escola primária? Quando ela concorreu para empregada contínua?Eles deram prioridade aos retornados, porque necessitavam mais. A minha mãe ganhou o concurso, as outras mulheres aqui ,que também concorreram, jesus, gafaram-a do piorio.”
Abraim Veloso
E, numa sequência de recordações, surgem os tempos de criança onde o preconceito existia na palavra retornado. “Eu tive alguns colegas meus que as mães diziam, não brinques com ele, que ele é retornado. E eles da minha idade e não brincavam comigo.”
Fátima, ainda hoje se recorda da “má a ideia que aqui havia dos returnados”.
Não são apenas histórias tristes e momentos complicados que marcam o recomeço em Portugal.Há histórias bonitas que hoje são lembradas e contadas aos familiares e são eles os primeiros a quererem partilhar. “Como foi aquele senhor que lhe deu dinheiro para você trazer para Portugal?” foi com esta pergunta que Fátima, em conjunto com Abraim, recorda uma dessas histórias bonitas.
Abraim: Foi um senhor, que ele já não tinha hipótese de trazer [o dinheiro], mas como o meu pai trabalhava no material de guerra, tinha direito a trazer algum dinheiro.Então ele trouxe dinheiro desse senhor e passado para aí três, quatro anos, o senhor,ali da zona de Leiria, foi lá entregar o dinheiro ao homem.” Fátima:Onde eles faziam essa entrega do dinheiro, estava lá o senhor que queria entregar e não conseguiu, porque não recebiam o dinheiro dele. Como o meu sogro foi entregar, ele pediu ao meu sogro, acho que foi assim, não estou a mentir.E o meu sogro disse: – Mas você não me conhece. E ele disse: -Mas olhe, é igual. Porque você pode chegar a Portugal e não me dar o dinheiro, mas eu também aqui não o consigo fazer. Então ele entregou ao meu sogro e ficou com a ideia que nunca mais veria o dinheiro. O meu sogro, um dia, foi com o sogro dele, o avô do Abraim, vamos procurar o homem e o homem tinha dito que era ali de perto e o meu sogro pelo nome andou, andou, andou e encontrou o homem e chegou a casa e tocou à campainha e o homenzito e pelos vistos veio e não o conhecia e o meu sogro disse: Olhe eu venho aqui, venho lhe trazer o seu dinheiro. Aí, não acredito! E o meu sogro deu-lhe o dinheiro todo certinho, do homem. Abraim: O meu pai nessa altura, ainda era muito dinheiro. E o meu pai, na altura, podia ter ficado com o dinheiro e nem sequer dizer nada. |
Foi entre conversas, histórias, boas e más, e com as poucas recordações que existiam em cima da mesa que,em ambas as famílias, a pergunta:“Qual é a opinião acerca da descolonização’” surgiu.
Não houve pausas, não houve hesitações, a resposta saiu com a naturalidade de quem já muito tinha pensado sobre o assunto. Portugal “devia de entregar, mas não da maneira que foi. Isto é a mesma coisa que dizer assim: Olha vamos para Angola, aquilo é um paraíso, toca a ir o pessoal todo, vai fora, e depois de repente, de um momento para o outro, puseram-se a andar. “Safaivos”. Foi quase isso.” Esta foi a opinião de Abraim.
“Foi mal feita.Porque entregaram só a um partido, onde deviam juntar os três e tentar chegar a acordo. Porque aquilo é assim, a descolonização devia ser o governo portugues e ter os partidos lá e ajudá-los a governar, aprender a governar. Mas aquilo não foi assim. Entregaram a um partido: pega lá e desenrasca-te. É lógico que as pessoas foram para governar e não tinham experiência nenhuma.Até que chegou a um ponto e aquilo era à “balda” mesmo.Porquê? Portugal entregou aquilo.Esquece-se que haviam mais dois partidos e foi aí a confusão. E Portugal devia era não dar a independência, era dar a autodeterminação, o que é isso? É prepará-los para governar, ganhar experiência e tudo isso e depois haver eleições e entregar a quem ganhasse.” Esta foi a resposta de Manuel.
Após isto, a conversa não acabou, continuou, assim como as histórias, boas e más e as poucas recordações que existiam em cima da mesa.
Manuel, Helena e Bernardino nunca mais lá voltaram. Abraim voltou “cheguei a passar em frente à casa do meu pai e estavam lá a viver, mas a gente nem parou muito para não dar muito alarme” esta foi a explicação de um momento que recordou da infância em África, mas apenas de vista.
Hoje, passados 47 anos o antes,o durante e o depois da vida Angola é lembrança. Em família, com amigos, conhecidos e até desconhecidos, a bagagem da memória é aberta e as histórias são memórias vividas, relembradas através da narrativa de as contar a alguém.
Inês Lopes Costa, 20 anos, nascida e criada numa freguesia de Vila Nova de Famalicão. Cresceu no meio do povo e o povo viu-a crescer, talvez este seja um do dos motivos que a faz gostar tanto de pessoas e falar com pessoas. Quando era pequena, ainda sem saber ler, gostava de olhar para os desenhos dos livros e inventar histórias. Hoje, adulta, espera poder ouvir histórias reais e espalhá-las pelo mundo. Sonha também dar voz a quem não a tem, tornando o invisível visível. Essas são talvez as razões que a levaram a escolher Ciências da Comunicação, estando neste momento no último ano da licenciatura. Ambiciosa, aventureira e curiosa são os adjetivos que a definem, pois ,diariamente, esforça-se para conquistar o que quer e partilhar o que gosta e aprendeu.