Transexualidade: “a minha medicação contra os problemas psicológicos foi a transformação”
- Matilde Silva
- 06/01/2022
- Saúde
Nascer num corpo em que não se identificam gera inúmeras perturbações psíquicas, o que condiciona a vida destas pessoas trans. Recorrer a ajuda psiquiatra nem sempre é a melhor solução. A transformação corporal é determinante e torna-se assim na cura de uma grande parte dos problemas associados. Katy Wandolly e Rute Bianca consideram a sua transformação de género a realização de um sonho e a sua grande salvação. Se não a tivessem realizado afirmam que não estariam por cá, hoje em dia, para contar a sua história e inspirar mais pessoas a terem a coragem de fazer o que realmente desejam.
[Reportagem por Catarina Lemos e Matilde Silva]
A transexualidade é um dos temas mais misteriosos e mais discutidos da atualidade, levantando ainda muitas dúvidas e curiosidades sobre o mesmo. Para muitas pessoas, o sexo que lhes foi atribuído à nascença, feminino ou masculino, não corresponde à identificação de si própria de género, termo conhecido como disforia do sexo.
“Não se acorda diferente, nós nascemos diferentes”
São 15:30 da tarde. A caminhada entre a paragem do metro dos Aliados e o “Invictus Bar” é breve, mas faz-se longa. A meteorologia não ajuda, estando a chover. O nervosismo apodera-se. Katy abre a porta da sua segunda casa, desvendando um pouco mais de si e do que é a sua vida, desde há 40 anos. A alegria que se é feita sentir ao passar pelas portas é contagiante, no entanto, o ambiente que se vive nos primeiros segundos é constrangedor.
Katy Wandolly, nome artístico pelo qual é conhecida, foi a primeira mulher transexual no Porto e um exemplo a seguir por muitas outras pessoas transexuais.
Com alguma tristeza no olhar, partilha, logo de início, que nunca se sentiu bem com o corpo que lhe fora atribuído à nascença. Soube, desde sempre, que algo de errado se passava, que não era ali que pertencia e, por isso, a sua cabeça não se conformava com a situação. “Eu senti sempre que estava no corpo errado. Eu sabia que havia qualquer coisa de diferente, mas não sabia o quê”. Apesar de toda a gente à sua volta acreditar que o “problema” que tinha era a homossexualidade, esta, apesar de incerta, sempre teve a convicção de que o que estava errado não era a sua orientação sexual, mas o género com que nasceu.
A entrevistada desvenda que o facto de se sentir no corpo errado lhe trouxe inúmeros problemas psicológicos, como a depressão. Contudo, nunca procurou ajuda para os resolver. Para Katy, a sua cura foi a transformação do seu corpo e, consequentemente, da sua identidade. Quando se olhou ao espelho, pela primeira vez, após os processos cirúrgicos sentiu que pertencia, finalmente, a algum sítio e que todos os seus problemas tinham acabado, porque se tinha encontrado e à sua felicidade, não precisando de apoio psicológico.
Rute Bianca, amiga de longa data de Katy, é o segundo testemunho. O caminho faz-se, agora, para o lado oposto. O próximo destino é o Campo 24 de Agosto, onde Rute já se faz esperar. Durante o caminho, a conversa é longa e fluída. Katy fala sobre a amiga, de toda a sua história e a jornada que ambas passaram, sempre de “mãos dadas”. Durante todo o caminho com Katy, que não é assim tão longo, conseguimos perceber os olhares e algum do preconceito de que é alvo, toda a gente que passa por nós olha-a de forma diferente, quase que de forma desprezível, mas isso não é algo que a incomode.
À porta da estação encontra-se Rute, enrolada em cachecóis, com umas luvas grossas, e um gorro na cabeça, agasalhada devido ao frio que se faz sentir. Esboça um sorriso como se já há anos nos conhecesse. A sua história em pouco difere da amiga.
A conversa começa logo de forma bastante pragmática e sem muitos rodeios, Rute demonstra-se, de imediato, uma pessoa sem muitas barreiras e pronta a esclarecer qualquer dúvida sobre o tema. A entrevistada, enquanto toma um descafeinado, começa por relatar, com olhos cheios de lágrimas, que desde que se lembra não se sentia alguém no corpo que lhe foi inicialmente atribuído, algo que mexia em muito com o seu bem-estar psicológico, “estávamos enclausuradas num corpo e tínhamos que modificar aquele corpo.”
Confessa ainda que este foi um sentimento inato, esta sensação de deslocação e de não pertencer a nada, está com Rute desde o seu nascimento e durante os seus primeiros 20 anos de vida, tendo sempre um só propósito, a transformação. “Aquela indiferença e aquelas questões que sentíamos na nossa cabeça, nós olhávamos para o espelho, mas não nos víamos. Eu olhava para o espelho e via um menino, mas não me via e pensava que aquele não era eu”.
Rute, admite, também, que o facto de ter nascido no corpo errado lhe trouxe muitas consequências a nível psicológico. Foram várias as tentativas de suicídio, sentiu-se numa depressão profunda, “num beco sem saída”. Foi várias vezes a psicólogos e psiquiatras que lhe deram variadas medicações, mas esta afirma que “a minha medicação contra os problemas psicológicos foi a transformação”. A cura de Rute foi também a mudança corporal. Os problemas do foro psicológico acabaram para esta mulher, quando viu no seu exterior o que reconhecia no seu interior, há vários anos.
“O que eu queria mesmo era o aspeto físico, olhar para o espelho e ver uma mulher”
Katy por, até aos 21 anos, nunca se ter encontrado no corpo que tinha, sentia uma enorme angústia e, como há 40 anos não havia informação e ajuda suficiente, decidiu fugir para França, com o objetivo de tratar a sua cabeça e se encontrar, modificando o seu corpo para o que tanto desejava e idealizava.
O seu aspeto físico, na altura, condicionou-a em vários aspetos, sentia-se frágil psicologicamente e vulnerável, sendo alvo fácil de chacota por parte dos colegas e vizinhos, ponderando o suicídio, a uma certa altura.
“Teria posto um fim à minha vida, porque não era aquilo que via ao espelho. Após a transformação, sentia que pertencia a um sítio.”
Katy Wandolly
Agora no seu camarim, sentada num pequeno banco, rodeada pelas suas maquilhagens espalhadas nos toucadores, pelas roupas penduradas em cabides e pelas infinitas perucas expostas na parede atrás de si, em prateleiras, Katy revela que foi em 1978 que descobriu que “podia ser aquilo que realmente queria”. Pegou nas suas coisas, fugiu para França e lá começou as intervenções necessárias para alcançar a figura com que sempre sonhou e onde sempre soube que pertencia. Apesar de livre vontade, Katy lamenta ter sofrido muito durante toda a transformação, por nunca ter sido acompanhada por equipa médica e por todas as suas cirurgias terem sido feitas por pessoas diferentes, em condições não muito favoráveis.
Katy conta-nos alegremente, enquanto experimenta umas das milhares perucas que tem, todo o seu processo de transformação. Iniciou o seu percurso com a depilação elétrica no rosto, de forma a eliminar a barba e, logo de seguida, realizou uma mamoplastia de aumento, revelando no seu corpo uma figura feminina, pela primeira vez.
Apesar das inúmeras intervenções cirúrgicas, esta não fez a transformação completa, a chamada resignação de sexo, por ter de se deslocar para outro país e saber que essas cirurgias não eram muito bem sucedidas mas, principalmente, por receio de voltar a fragilizar a sua condição psicológica, visto sentir-se feliz e realizada com as alterações feitas, até à data. “Comecei a ver ao meu redor muitas pessoas com problemas de cabeça, que ficavam afetadas, acho que não estavam preparadas e comecei a interrogar-me: será que eu me vou operar e isso vai-me acontecer também, que eu vou mudar e vou ficar mal psicologicamente, já que nunca tive nenhum acompanhamento”.
Passam largos minutos das 17 horas, ainda no camarim, Katy desvenda o seu guarda-roupa dos shows revelando os vestidos feitos à mão, pela mesma, e outros tantos feitos pela sua costureira particular. Mostra e experimenta a sua vasta coleção de perucas, verdadeiras e artificiais, as maquilhagens, as centenas de saltos que tem à sua disposição e confessa, com um enorme sorriso no rosto e um brilho no olhar, que o processo de transformação é complicado, mas que não se lembra sequer da dor que sentiu no pós-operatório, pois a sua realização psicológica e a alegria que sentiu e sente, encobriram toda a sua dor física, “quando vi o resultado e percebi que era aquele corpo a que pertencia, esqueci tudo de doloroso que tive de passar para chegar até ali”.
“É a nossa vitória, o ser humano na sua perfeição, o exemplo da transexualidade”
Rute Bianca recorda, com uma grande angústia que, até à data da sua transformação, sempre foi uma pessoa muito infeliz, sem objetivos de vida e sem qualquer tipo de rumo. O aspeto físico limitava a sua qualidade de vida, não permitindo sequer um convívio em café com os amigos, pois sentia-se completamente rejeitada e posta de parte. Confessa ainda que na escola, sofria de muita discriminação por agir de forma feminina e entre risos dizia sentir-se a “fêmea alfa” no meio dos rapazes, por gostar de ter a atenção deles em cima dela.
A diferença caracterizada nas atitudes de Rute condicionou o seu percurso escolar, obrigando-a a mudar de escola diversas vezes, o que fez com que esta se sentisse completamente derrotada, a nível psicológico, e sem qualquer tipo de propósito. Nunca procurou ajuda psicológica por ter vergonha de o fazer, fugindo também para França onde ninguém a conhecia e não era julgada.
O frio traz arrepios consigo e a chuva o seu cheiro característico, sendo nestas condições que Rute conta quando percebeu que queria e tinha de fazer a transformação, em prol do seu bem estar psicológico. Katy tinha regressado a Portugal como uma mulher, após a sua jornada em França. No dia em que Rute se cruzou com a amiga soube imediatamente que precisava da sua ajuda para conseguir alcançar aquela figura para si própria. “Quando a Lena chegou de França, pela primeira vez, vinha toda feminina, com peito e com um corpo de mulher, eu pensei “eu sou assim, é isto que eu quero” e pedi ajuda à Lena.”, Lena é o nome que Katy é carinhosamente apelidada pelas amigas mais próximas.
Foi em território francês, com a ajuda de Katy, através de contactos e recomendações, que Rute realizou a primeira etapa do seu grande sonho, a primeira cirurgia para a transformação de sexo, a colocação de implantes mamários. De seguida modificou as suas ancas tornando-as mais modeladas e femininas e, mais tarde, embarcou numa longa viagem para a derradeira cirurgia, a resignação de sexo, em Casablanca. Anos depois, na Bélgica, fez outra cirurgia na vagina para deixá-la esteticamente mais agradável. “As mamas fiz primeiro e só depois a anca. Fui a Casablanca fazer a vagina e na Bélgica fiz uma estética na vagina, porque não estava muito bonita.”
Nesta conversa imbuída de emoções, com os olhos cheios de lágrimas, Rute revela ter encontrado o seu lugar no mundo após as inúmeras cirurgias. O processo cirúrgico deu à vida de Rute um novo sentido, o sentido de viver. Contudo, esta, com uma grande tristeza no olhar, confessa que ser transexual é “sofrer até morrer”, pois apesar de, atualmente, se sentir bem no corpo que tem, é ainda um grande alvo de preconceito.
“Nunca me arrependo de mudar para mulher, mas se soubesse que ia nascer assim, um homem, não aceitaria porque é uma vida de sofrimento e luta constante.”
Rute Bianca
A ajuda psicológica recebida por ambas antes, durante e após a transformação foi nula. Katy considera nunca ter precisado de ajuda, pois sabia que o problema dela provinha do seu descontentamento com a figura que tinha de si, já Rute considera que necessitava, mas na altura este era um tema desvalorizado e pouco conhecido. Com um sorriso no rosto, Rute afirma que ela, Katy e as restantes amigas transexuais foram o apoio umas das outras, durante todo o processo, até hoje. “Apoiamo-nos umas às outras. Choramos nas mãos umas das outras e choramos no colo umas das outras. No nosso tempo não havia nada disso.”
A saúde mental após a transformação trans
Zélia Figueiredo, médica psiquiatra e sexóloga especializada na área de disforia de sexo, no Hospital de Magalhães Lemos, explica que o acompanhamento psiquiátrico para transexuais pré-operatório é obrigatório, visto que para iniciar o tratamento é necessário um relatório de um psicólogo ou psiquiatra, nos hospitais referenciados ou clínicas privadas, no qual está explícito que a pessoa está psicologicamente bem e ciente da sua decisão, sabendo todos os riscos e consequências que podem prover do seu veredito.
Contudo, após a transformação completa dos trans, são muito poucos aqueles que mantêm o acompanhamento psicológico, por já não ser obrigatório, como anteriormente, mas também por, aquando do fim do seu processo de mudança, não sentirem mais a necessidade de acompanhamentos, pois os seus problemas psicológicos acabam quando finalmente vêm no espelho aquilo que já sentiam ser há muito tempo. Zélia Figueiredo explica assim que a transformação é a cura para a maior parte dos problemas do foro psicológico das pessoas trans, porque até então o que gerava os seus problemas era o facto de não se sentirem no corpo que lhes foi atribuído à nascença.
Já Luís Pinheiro, psicólogo especialista no acompanhamento de trans na Casa Qui, Associação de Solidariedade Social especializada nas questões da Orientação Sexual e da Identidade ou Expressão de Género, afirma que o acompanhamento pré-transformação é de uma importância tremenda, não só para que as pessoas tenham a plena consciência da decisão que estão a tomar estarem cientes de todos os riscos que estão a correr ao realizar as cirurgias, como também servem como forma de preparação para o pós-operatório. Luís admite ainda que a transformação é sim, muitas vezes, o tratamento e a salvação destas pessoas, que vivem num sofrimento profundo durante anos, mas realça a ideia que o acompanhamento após, apesar de não ser obrigatório, é, na sua opinião, muito importante, visto que estas pessoas vêm carregadas de traumas, depressões, ansiedades e que a mínima coisa pode espoletar sentimentos mais negativos, precisando de um acompanhamento mais especializado.
“Os problemas psicológicos são, sobretudo, motivados pelos problemas e dificuldades que encontram quer a nível da família, quer a nível social e isso tem vindo a melhorar. Portanto eles estão menos deprimidos, menos ansiosos e às vezes basta começar o processo de transição para essas ansiedades desaparecerem. O que tem haver com o mau estar com o corpo também é muito variável, há pessoas que estão muito mal com o corpo e estão em sofrimento, mas como no processo de transição tudo aquilo é para melhorar, nesse aspeto elas também melhoram.”
Zélia Figueiredo
O que é a transexualidade e o processo envolvente?
Segundo a Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo, ILGA Portugal, estima-se que um homem em cada 12 mil sente que nasceu no corpo errado e que deveria ser mulher e, em menor percentagem, mulheres que sentem que nasceram no corpo errado e que o seu sexo deveria ser o masculino. Em conformidade com o ILGA, a isto se chamam pessoas transexuais, ou seja, pessoas que possuem uma orientação sexual diferente do seu sexo biológico. O seu psicológico e o seu biológico entram assim em grande conflito. O choque entre a identidade de género e o sexo de nascença é designado por disforia de género.
O sujeito transexual faz uma panóplia de cirurgias para poder mudar o seu sexo em conformidade com o corpo ao qual este acredita pertencer e é importante que este o consiga alterar para o seu ideal imaginário, de forma a recuperar o seu bem-estar, pois se isto não acontecer, vê-se como alguém desprezível e odiado, um ser completamente fragmentando.
Na nossa sociedade existe, ainda, muito preconceito para com pessoas que não apresentam as “normas” de género que lhes são impostas. Os transexuais são, de acordo com um estudo, a minoria mais discriminada, desde a exclusão social aos abusos físicos e psicológicos, muitas das vezes praticadas pelo seio familiar e social, resultando, em diversos casos, no suicídio.
Em 2012, no manual Diagnostic and Statistical Manual of Mental Health o termo “transtorno de identidade de género” foi abolido por estar diretamente associado a uma patologia, coisa que a transexualidade não é. Desta forma, o termo passa a ser “disforia de género”, estando associado a um mal-estar entre a pessoa e o que esta sente e o seu género biológico.
Até 2018, a Organização Mundial da Saúde, OMS, considerava a transexualidade como um transtorno mental, “Até agora, as pessoas que não se identificavam com o sexo que lhes era atribuído ao nascer eram consideradas doentes mentais de acordo com os principais manuais de diagnóstico, devido à classificação em vigor da OMS.”
Em Portugal, segundo a média do Serviço Nacional de Saúde, SNS, são precisos quatro anos para se construir um corpo com um sexo diferente, o que torna este processo longo e bastante complexo.
A pessoa procura um centro de saúde e revela a sua vontade em mudar de sexo. Numa fase inicial, é imediatamente designada a um psicólogo ou psiquiatra, tendo uma avaliação inicial, de modo a perceber se a pessoa tem ou não algum tipo de patologia, sendo direcionado para psiquiatria, caso apresente sintomas condizentes com alguma patologia, vendo se existe ambiguidade entre o discurso e a vontade. Se a pessoa já estiver numa fase de toma de hormonas, é direcionada para um médico especializado, o endocrinologista. O diagnóstico “demora em média 6 meses”. Envolve psicólogos, psiquiatras, sexólogos e muitos exames.
Numa segunda fase, existe o acompanhamento psicológico que avalia aspetos como o seio familiar, a vida social, entre outros. É através de um formulário, onde se consegue avaliar a forma como o sujeito reage à sua transformação e se é efetivamente, aquilo que pretende fazer, que este avança para toda a parte cirúrgica, obtendo o visto do profissional de saúde mental.
Este processo tem de ser bastante rigoroso e é a parte mais importante, pois a partir do momento em que se autoriza a cirurgia não há como voltar atrás.
Tanto no caso das mulheres, como no caso dos homens, a finalidade do processo é sempre a mesma: fazer com que o paciente se sinta bem psicologicamente, com uma sensação de conforto com o género assumido, pois é ao não se sentirem bem com a figura que vêm, que os problemas psicológicos nos trans aparecem e por ali permanecem, ao não haver intervenção imediata.
Matilde Silva, 20 anos, natural de Leça da Palmeira. O gosto por novas línguas, culturas, costumes e leitura fez com que a comunicação surgisse como uma paixão e carreira a seguir. Estudante de terceiro ano em Ciências da Comunicação, na Universidade Lusófona do Porto, e colaboradora na editoria da “Geração Z” na plataforma #infomedia