Quando 24 horas não chegam para conciliar ginástica e escola

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Quando 24 horas não chegam para conciliar ginástica e escola

O interesse começa na escola, com os amigos, nas brincadeiras. Fazem cambalhotas, pinos, rodas e ganha-se o gosto pela ginástica. É nesta curiosidade que surgem os desafios. A ginástica é um desporto exigente e rigoroso. A escola, fundamental para o desenvolvimento. Como coordenam estes jovens atletas as duas áreas?

[Texto de Mariana Azevedo]

A ginástica requer dos atletas dedicação e tempo, da mesma forma que necessita de força, flexibilidade, concentração e agilidade. “A questão da ginástica é que é um desporto muito completo que obriga a um trabalho de equipa, entreajuda e apoio psicológico entre atletas. O desporto é uma mais valia para qualquer jovem, e a ginástica ainda mais por ser algo tão rigoroso e exigente”, defende Alexandre Portela, fisioterapeuta no Acro Clube da Maia.

Um atleta de Alto Rendimento, como é o caso de Beatriz Carneiro, Campeã do Mundo de juniores em 2018, treina normalmente 6 dias por semana, cerca de cinco ou seis horas por dia. A ginasta costuma fazer dois treinos bi-diários por semana, “terças e sextas”. O primeiro “começa bem cedo pela manhã, às 6h30, e o segundo mais ao fim do dia”. Esta carga horária fez com que muitas vezes tivesse de faltar à escola, e que agora tenha de o fazer na faculdade também. Beatriz Dias, ginasta da Seleção Nacional e estudante de medicina no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, confessa que “faltava às aulas teóricas para ir treinar”, chegando a ausentar-se semanas inteiras para poder apresentar-se em Campeonatos do Mundo e Europeus. 

Fotografia cedida por Beatriz Carneiro

“Quando chegamos a este nível muitas vezes nem faltamos apenas para as competições, também faltamos por causa de treinos, se tivermos estágios, ou mesmo para descansar”

 Beatriz Carneiro 

Para os atletas dos escalões nacionais a pressão é menor, mas a exigência é a mesma. Inês Moreira, atual treinadora de ginástica artística feminina dos 4 aos 7 anos do Acro Clube da Maia, e ex-atleta do mesmo ginásio, conta que “desde os 7 anos que treinava de segunda a sábado, três horas por dia”. Na época das férias fazia treinos bi-diários, sendo que as únicas épocas em que não treinava era aos “domingos, feriados e no mês de agosto”.

Fotografia cedida por Inês Moreira

Acho que foi a ginástica que me trouxe disciplina e rigidez nos horários e pouca procrastinação

Inês Moreira

Esta realidade faz com que o tempo para estudar seja escasso e “contado”. Foco, responsabilidade e organização são necessários para que a escola e a faculdade não sejam prejudicadas. Estes atletas de alta competição diferenciam-se por isso – “tu tens de dizer “não, tenho mesmo de fazer hoje, que amanhã não tenho tempo ou só tenho mesmo esta hora para estudar e tens de estar mesmo focada”, desabafa Beatriz Dias.

Em relação aos estudos e à ginástica, eu até ao secundário, sempre dei uma prioridade maior à ginástica

Beatriz Carneiro

O Estatuto de alto rendimento

Um dos apoios que o Estado proporciona aos atletas é a atribuição de um Estatuto de Alto Rendimento. O desporto de alto rendimento é reconhecido como determinante para o desenvolvimento desportivo. Para além dos impactos sociais que tem, gera interesse e entusiasmo pelo desporto, contribuindo para a generalização da prática desportiva. Este estatuto tem em conta o rigor e a exigência dos diferentes desportos, e por isso, apenas alguns atletas, treinadores e árbitros portugueses se encontram abrangidos por este nível de prática desportiva. 

Como se obtém o Estatuto de Alto Rendimento?
Segundo o Decreto-Lei n.º 272/2009 de 1 de outubro, define-se «alto rendimento» como “a prática desportiva em que os praticantes obtêm classificações e resultados desportivos de elevado mérito, aferidos em função dos padrões desportivos internacionais”.
Para a obtenção do Estatuto de Alto Rendimento é necessário preencher determinados requisitos.
As modalidades individuais estão divididas em:
– Nível A
. Os atletas que integraram seleções nacionais e obtenção de uma classificação na 1.ª metade da tabela em Campeonatos do Mundo ou Campeonatos da Europa, no escalão sénior/absoluto;
. Aqueles que obtiveram uma classificação não inferior ao 3.º lugar nas mesmas competições, no escalão imediatamente inferior ao absoluto;
. Os atletas que se tenham qualificado para os Jogos Olímpicos.
– Nível B
. Atletas com uma classificação na 1.ª metade da tabela em Campeonatos do Mundo ou Campeonatos da Europa no escalão absoluto e no escalão imediatamente inferior;
. Classificação equivalente a semifinalista.
– Nível C
. Os atletas integrados na Seleção ou representação nacional em competições desportivas de elevado nível
. Atletas apurados para os Jogos Olímpicos da Juventude;
. Aqueles que obtiveram uma classificação não inferior ao 3.º lugar em Festivais Olímpicos da Juventude Europeia
. Classificação não inferior ao 3.º lugar em Universíadas, um evento multidesportivo internacional, organizado para atletas universitários pela Federação Internacional do Desporto Universitário (FISU).
Relativamente às modalidades coletivas:
– Nível A
. Inclui os atletas que tenham integrado Seleções Nacionais e que obtiveram classificação na 1.ª metade da tabela em Campeonatos do Mundo ou Campeonatos da Europa, no escalão absoluto;
. O que integraram as Seleções Nacionais obtendo uma classificação não inferior ao 3.º lugar nessas competições, no escalão imediatamente inferior ao absoluto;
. Qualificação para os Jogos Olímpicos.

Beatriz Carneiro usufrui deste estatuto o que lhe permite adaptar o horário escolar e o regime de frequência que melhor se adaptem à preparação desportiva. Desta forma, a frequência de aulas em turmas diferentes também pode ser admitida. As faltas, quando dadas no período de preparação e participação em competições desportivas, são justificadas, sem prejuízo das consequências escolares. As provas de avaliação devem ser fixadas em data que não colida com o período de participação nas respetivas competições desportivas, podendo ser fixadas épocas especiais de avaliação. Os atletas têm a possibilidade de requerer a alteração da data das provas de avaliação e a fixação de épocas especiais. Relativamente ao acesso e ingresso no Ensino Superior, os Atletas de Alto Rendimento beneficiam do regime especial de acesso.

Nesta parte também o facto de ter Estatuto de Alto Rendimento ajuda-me e permite-me faltar mais e conseguir justificar sem problemas as faltas, mas claro que a escola/faculdade é essencial e temos de saber gerir as nossas faltas, não dar em excesso de modo a não sairmos prejudicados para os nossos estudos.

Beatriz Carneiro
Praticantes de Ginástica Federados | PORDATA

Com 21.298 ginastas federados em 2020, Portugal, assiste a um aumento significativo no número de atletas federados. São mais 17 115 do que em 1996, data do primeiro registo do site PORDATA. Contudo, este estatuto não é atribuído a todos os atletas, nem é permanente. Beatriz Dias perdeu o estatuto devido a uma lesão que a impossibilitou de treinar durante cinco meses, e a afastou do Mundial de 2021. Mas ainda assim, considera que o programa teve um papel fundamental para o ingresso no Ensino Superior – “Se eu tivesse o tempo para estudar e o tempo normal, era capaz de conseguir na mesma se eu não treinasse. Mas treinando é muita coisa ao mesmo tempo”. Inês Moreira, que apenas competiu nacionalmente, nunca teve e não tem, mesmo sendo treinadora, acesso ao estatuto.

A Federação de Ginástica de Portugal só financia aos que são do escalão sénior e não são só esses que tem competições internacionais.

Inês Moreira

Para além deste Estatuto, no âmbito das medidas específicas de apoio ao desenvolvimento do Desporto de Alto Rendimento, são concedidas bolsas académicas a atletas que desejem frequentar, no país ou no estrangeiro, estabelecimentos de Ensino Superior. As bolsas académicas podem ir até ao montante da propina anual máxima estabelecida legalmente no Ensino Superior Público Português. Pode ainda ser acrescentado um subsídio adicional para despesas gerais, o qual não poderá exceder 25% do valor da bolsa académica completa. Este requerimento para concessão da bolsa deve ser apresentado todos os anos letivos.

A 100% psicologicamente

O nosso peso era verificado todos os meses, havia muita competição até entre nós que éramos da mesma equipa. Demasiada pressão para quem só tinha 10 anos. Com o passar dos anos fui crescendo e apercebi-me do que nos impunham. Por exemplo, para celebrar o nosso aniversário, cantávamos os parabéns em gelatina pois “uma ginasta não come bolo”

Inês Moreira

Estes atletas estão sujeitos a pressão constante, tanto a nível escolar como desportivo. Por isso, o apoio psicológico é necessário para haja uma coordenação entre escola, desporto e vida social. 

As Unidades de Apoio ao Alto Rendimento na Escola (UAARE) são um projeto que visa a articulação entre os agrupamentos de escola, os encarregados de educação, as federações desportivas e os municípios. Tem como objetivo conciliar a atividade escolar com a prática desportiva de alunos/atletas do Ensino Secundário enquadrados no regime de Alto Rendimento, Seleções Nacionais ou de elevado potencial desportivo. A UAARE está presente em 19 escolas públicas nacionais, atuando em três domínios essenciais: gestão escolar, gestão desportiva e saúde e bem-estar. 

Critérios para integração de alunos-atletas
1. Alunos-atletas de nível I com Estatuto de Alto Rendimento;
2. Alunos-atletas de nível II que integrem Seleções Nacionais ou outras representações desportivas nacionais;
3. Alunos-atletas de nível III com potencial talento desportivo, mediante comprovativo que ateste tal estatuto, com evidências relevantes, validadas pelo diretor técnico nacional da federação da respetiva modalidade desportiva;
4. Alunos-atletas noutras situações, autorizadas pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas da educação e do desporto, mediante parecer prévio da Direção-Geral da Educação (DGE), integrados nos níveis UAARE para alunos-atletas;
5. Outros agentes desportivos previstos no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 272/2009, de 1 de outubro, e no artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 45/2013, de 5 de abril, integrados nos níveis UAARE para alunos-atletas.

Sara Carvalho Malhoa é psicóloga de desporto nesta iniciativa que integra mais de 700 alunos-atletas. Acredita que “a psicologia aplicada ao contexto desportivo, procura um equilíbrio e gestão eficiente e eficaz entre a psicologia e a performance desportiva, particularmente os aspetos psicológicos que contribuem para uma performance desportiva de excelência e para o bem-estar dos atletas”. Desta forma, a presença da psicologia no desporto contribui para a definição de objetivos, ao mesmo tempo que promove qualidade de vida, “fruto da melhor gestão e conciliação de carreira”. 

A família desempenha um papel importante no ingresso no desporto, segundo a psicóloga – “Os irmãos têm também um papel importante, de suporte e motivação, muitas vezes acompanhando e estendendo a prática da modalidade para casa, em família”. A abordagem do modelo UAARE é uma abordagem integrada, sistémica e em rede com todos os intervenientes na vida do atleta. 

Embora os próprios atletas sejam responsáveis por seu envolvimento na carreira dupla, o apoio adequado dos pais é importante para suporte, afeto e potenciar um ambiente criador de oportunidades de crescimento, competências, perceções e construção de experiência para aprender a planear e gerir um processo de dupla carreira.

Sara Carvalho Malhoa, Psicóloga de Desporto na UAARE

Segundo a psicologia clínica, o desporto eleva a autoestima, melhora a capacidade de raciocínio, o foco, a determinação, o trabalho por objetivos e a memória. Previne e reduz a incidência de depressão, ansiedade e estresse e melhora a resiliência e o sono. Ao nível social, estabelecem-se laços amizade, trabalha-se a comunicação, permitindo a partilha de sentimentos. 

Definir objetivos e timings de concretização permitem ao atleta “degrau a degrau, estar cada mais próximo do objetivo – a excelência, enquanto aluno, atleta e pessoa”

Eu sempre disse a mim mesma que iria desistir da ginástica quando para mim fizesse sentido e achasse que estava na altura de alcançar coisas novas na minha vida. Quando eu sentir que dei tudo e que saio feliz e não de cabeça baixa e com arrependimentos de que poderia ter feito mais

Beatriz Carneiro

Desistir: o impacto das lesões

A idade ideal para se iniciar a Ginástica é uma questão que gera polémica entre os especialistas. Alexandre Portela, fisioterapeuta no Acro Clube da Maia, acredita que “havendo possibilidade de conciliar escola, vida familiar e treinos, quanto mais cedo melhor, já que os benefícios vão surgir mais cedo”. Para além disso, defende que é fundamental “respeitar os limites inerentes a cada faixa etária”.

Beatriz Dias, iniciou o desporto aos 9 anos de idade. Comparativamente a Inês Moreira, que iniciou a ginástica aos 4 anos de idade, para Beatriz o esforço físico teve de ser maior e os exercícios adaptados – “aos 9 anos já não és tão flexível e então para ganhar flexibilidade elas tinham mesmo de forçar, então eu chorava e a minha mãe não conseguia ver os treinos”. O tipo de treino que ambas as atletas tinham era diferente e de dificuldade proporcional à idade. 

Por contradição, na ginástica “não há uma grande longevidade a nível de carreiras”. A quantidade de horas de treino, a quantidade de cargas que são impostas ao corpo, a relação com treinadores, família e colegas, tanto de escola como de trabalho, são fatores que para o fisioterapeuta são determinantes para a duração da carreira de um atleta. “A partir dos 20 anos já começa a ser complicado porque muitas vezes a nível de tempo é difícil gerir tudo”, e por isso muitos atletas são forçados a deixar a modalidade precocemente. 

As ginastas que estão a atuar ao mais alto nível competitivo, quando vão a competições internacionais representar o nosso país, apresentam queixas diárias. Portanto, há um momento em que o corpo vai dizer “ok já chega

Alexandre Portela

Outro fator determinante para a permanência do atleta na modalidade são as lesões que enfrenta ao longo do seu percurso desportivo. Algumas das lesões mais comuns, segundo Alexandre Portela, são ao nível do punho, devido ao impacto constante e à absorção de cargas ao nível do membro superior. Ao nível da lombar, “no dia a dia, as pessoas que não são atletas de ginástica, passam muito tempo no padrão de flexão enquanto que na ginástica envolve tudo muito a extensão”. Entorses quer ao nível do joelho, quer ao nível do tornozelo, e ainda distensões musculares. “A rotura do cruzado anterior é das lesões mais complicadas a nível desportivo” podendo envolver tratamento cirúrgico e uma recuperação média de nove meses, desde a cirurgia até que o atleta volte a estar a 100%

Em 2016, uma lesão no ombro impossibilitou Inês Moreira de continuar a praticar ginástica. 

Tenho um historial de lesões grande, só ainda não me lesionei nos joelhos, o meu corpo está sempre todo lesionado em todo o lado

Beatriz Dias
Fotografia cedida por Beatriz Dias | Imagem: Ricardo Bufolin

Desistir já esteve nos planos de Beatriz Dias pelas inúmeras lesões que sofreu. A última lesão, que a manteve parada durante cinco meses, foi determinante para começar a ponderar a desistência. Era a quarta vez que se lesionava quando já estava apurada e na equipa do Mundial de 2021 – “Eu bati com o pescoço na barra, nas paralelas. Podia ter ficado paraplégica ou pior. Fraturei no pescoço, abri a minha canela e depois fiz uma entorse gravíssima no meu pé esquerdo em que rompi quatro ligamentos”. 

Costumamos dizer que nós fisioterapeutas não somos psicólogos, mas muitas das vezes ouvimos os desabafos dos atletas quando eles vão ter connosco. Nenhum atleta seja em que desporto for quer estar parado, quer estar lesionado, portanto muitas vezes a lesão é um momento muito complicado na vida dos atletas

Alexandre Portela

Mariana Azevedo

Sou a Mariana Azevedo e tenho 20 anos. Sou colaboradora da editoria de desporto do #infomedia. Ingressei no curso de Ciências da Comunicação por ser a combinação perfeita de dois mundos que tanto aprecio, comunicar e o desporto. O desporto sempre esteve presente desde muito pequena e por isso, pretendo dar voz àquelas modalidades que não têm o destaque merecido nacionalmente.