Transformismo: Quando Marco se converte em Kim Fox
- Juliana Matos Silva
- 22/01/2021
- Portugal
À luz da noite, Marco Sousa transforma-se em drag queen. Esta é a história de quem é apaixonado pelo mundo do transformismo. Revela ao #infomedia os prós e contras de viver a pele de Kim Fox.
O que significa drag queen? drɛɡˈkwin – nome feminino – artista do sexo masculino que atua com roupa feminina vistosa e extravagante, exagerando nos gestos e na maquilhagem para efeitos cómicos Fonte: infopédia |
Aos 16 anos, o Marco entrou pela primeira vez numa discoteca gay. Perante a atuação de transformistas, pensou “eu quero ser isto”. Durante anos, criou a Kim Fox, personalidade que representa tantas e tantas noites. “É a minha melhor versão porque projetei uma personagem, um boneco, com tudo aquilo de bom que poderia haver dentro de mim e acrescentei aquilo que me faltava”, descreve. A primeira proposta de trabalho enquanto drag queen surgiu em 2015, por parte do bar Zoom, na cidade do Porto – “era a minha oportunidade e era o meu sonho”, desabafa com um ar nostálgico. Nessa altura, apesar de ter todo o material para a produção de uma personagem, não tinha prática. Na qualidade de pessoa perfecionista, optou por abandonar o projeto para conseguir aprender numa discoteca mais pequena, isto porque no Zoom não existia margem para erros.
Como surgiram as drag queens? A arte do transformismo surgiu com a prática do teatro, na Grécia Antiga. Numa fase inicial, as mulheres não podiam ser atrizes, por isso os homens interpretavam papéis femininos. Com o passar do tempo, a realidade mudou e já não era necessário que o indivíduo do sexo masculino se disfarçasse. Porém, este não quis abandonar o palco. A sociedade evoluiu e o Homem apostou em espetáculos em clubes gays. Com a chegada da cultura pop, nos anos 60, devido à aposta em teatros musicais, os transformistas foram dispensados. Nessa altura, a população LGBTI revelou-se predominante na sociedade e assistiu-se ao reerguer das drag queens, ícones na luta contra o preconceito e pelos direitos humanos. Fonte: G1 – portal de notícias do Grupo Globo |
O relógio marca 13h15. No salão de cabeleireiro do qual o Marco é proprietário, em Vila Nova de Gaia, dá-se início à transformação. Começa por cobrir, entusiasmado, o cabelo com um meia preta. A propósito, a primeira parte da mudança relaciona-se intimamente com a última. Afinal de contas, isto serve para aplicar, de forma correta, a peruca, que é, precisamente, o último elemento do processo.
A luz fria transmitida por um anel iluminador realça o contraste de cores da maquilhagem. Entre sombras com os tons da bandeira LGBT, os olhos com tonalidade de avelã sobressaem. O sorriso, de orelha a orelha, não disfarça a segurança que a personagem feminina lhe transmite. Não é à toa que confessa que esta é “o auge da perfeição”. Conversa vai, conversa vem, Marco destaca que o transformismo é o louvor à mulher – “se não existisse sexo feminino, também não existiam drag queens”.
Curiosamente, isto dá que pensar… Se este tipo de arte é um elogio a grande parte da população, por que motivo é que é tão mal encarado? A resposta a esta questão talvez esteja na mentalidade conservadora da sociedade. Por exemplo, em Portugal, Marco esclarece que não existe “uma casa de espetáculos que nos introduza em teatros, estações de televisão que nos inclua em programas ou revistas que nos insira em conteúdos”. Esta circunstância não permite a existência de uma drag queen à luz da noite, caso não exista um trabalho fixo durante o dia. Na região Norte, em particular no Porto, os bares gays são o local onde Kim Fox tem oportunidade de mostrar o que vale. Desgostoso, sintetiza que os artistas só pediam mais oportunidades ao país…
RuPaul’s Drag Race – um reality que criou responsabilidade social O norte-americano RuPaul é, provavelmente, a drag queen mais conhecida do mundo. Pode-se afirmar que o programa RuPaul’s Drag Race conseguiu abrir muitas mentalidades face à polémica que envolve o tema do transformismo. O reality show tem como objetivo a escolha de uma das concorrentes, que recebe o título de “America’s Next Drag Superstar” e um prémio de 100 mil dólares. |
Em Portugal, não pode transformar o hobby numa profissão, e defende que isso é uma forma de preconceito. A propósito, recorda o dia em que se assumiu como homossexual. Tinha 14 anos quando o pai o questionou, num tom de brincadeira, “tu tens os gostos trocados?”. Não teve coragem para responder a verdade, por isso negou. Aos 16, o pai mostrou-se persistente e repetiu a pergunta. Ainda que tenha reconhecido que aquele era um bom momento para admitir, “verbalizar que era gay era difícil”. A mãe, de quem esperava uma maior compreensão, retraiu-se. Pensava que havia possibilidade de, um dia mais tarde, o filho se tornar transsexual, e acreditava que iria ser descriminado por isso. Já o progenitor, procurou aceitar da melhor forma a orientação sexual de Marco.
Enquanto se maquilha minuciosamente, revela, com mágoa no olhar, que o preconceito que enfrenta surge de comentários como “quero-te dar os parabéns por seres quem és, por seres corajoso, por não teres vergonha de ser assim”. Refere que não se parabeniza, por exemplo, uma pessoa heterossexual por ser como é, logo facilmente se entende que há mensagens com um fundo de discriminação, mesmo que não sejam intencionais.
No entanto, o episódio homofóbico mais marcante vivido por Kim Fox aconteceu em Espanha, no Madrid Gay Pride de 2019, evento que é considerado o maior desfile da comunidade LGBT em toda a Europa. Estava na Gran Vía, uma das ruas madrilenas mais conhecidas, quando um grupo de espanhóis pediu para tirar fotografias e, desrespeitando a personagem, tentou queimar a sua roupa com um isqueiro. “Senti-me lixo”, desabafa.
Retomando a passagem de ele para ela… Após fazer um eyeliner bem pontiagudo e aplicar glitter, que não pode, segundo Marco, faltar a uma personagem, evidencia ainda mais os olhos com pestanas postiças, que o colocaram perante um desafio. Esqueceu-se da cola no bar onde atuou pela última vez. Mas arranjou logo uma solução – laca para o cabelo. Posicionou-a perto de um cotonete, vaporizou o spray e depois, otimista na alternativa que tinha acabado de pensar, espalhou o líquido na superfície da pestana que se encosta ao olho. Como costuma dizer, “drag queen faz omelete até sem ovos”. Os lábios, com um preenchimento azul metalizado e vários tons de brilho, formaram uma espécie de arco-íris, assim como os olhos, que sobressaíram ainda mais quando Marco colocou as lentes de contacto.
Quatro horas mais tarde, chegou a altura de se vestir, e esta é a fase final da transição para Kim Fox. Os sete pares de meias, do tom da pele, por se encontrarem dispostos em camadas, comprimem e moldam o corpo. Na perspetiva da personagem, este é o aspeto mais doloroso, porque os dedos dos pés são, realmente, muito pressionados. Já para não falar do enorme calor que sente no verão… Através de esponjas nos glúteos, cria algumas curvas para conseguir transmitir a ideia de que se trata de um corpo feminino. Ainda, para afinar a cintura, utiliza uma quantidade considerável de fita cola.
A roupa que escolheu, policromática e ofuscante, cria um forte destaque ao olhar de qualquer um – por algum motivo é a sua preferida. As botas de cano alto, com uma altura de aproximadamente 50 centímetros, fazem jus à verdadeira artista que está à frente do espelho. Os sapatos, devido a tantos pares de meias, devem ser sempre um tamanho acima do normal, confessa.
Por fim, o cabelo castanho com mechas loiras é substituído pela peruca branca, que o próprio Marco penteou. Esta, como foi lavada, cortada e hidratada, vale 75 euros. Mas a peruca mais cara que a Kim Fox tem, foi-lhe oferecida por um fã, e essa nunca estará à venda. Conta com um quilograma e meio de cabelo, e só aí estão investidos dois mil e 500 euros.
Entretanto, são 18h e, como é inverno, já anoiteceu. Algum tempo depois de ter dado início à mudança, adotando uma postura firme, transmite uma confiança inabalável. Radiante com o resultado final, frisa que “montar uma drag queen é como montar legos”.
Pronuncia-se sobre aquele que considera ser o auge da sua carreira. Com um ar eufórico, relata que tudo aconteceu em 2018, na marcha do orgulho LGBT, na cidade invicta. Nesse ano, aceitou o convite para representar a discoteca Zoom, e a produção da sua personagem foi inspirada em borboletas. Durante o evento, dirigiu-se até ela uma menina de cinco anos, que logo se mostrou admirada e disse, a pular de alegria, “tu és a rainha das borboletas? Eu adoro borboletas!”. Surpresa por encontrar uma criança com sensivelmente cinco anos, Kim Fox rapidamente quis conhecer os pais, que vinham acompanhados por outro filho, e acabou por lhes perguntar “vocês são um casal hétero, o que é que fazem aqui?”. Marco relembra, emocionado, a resposta deles – “viemos defender a vossa causa”. Curiosamente, o momento tornou-se viral na internet através de uma fotografia, que valeu ao autor um prémio de cinco mil euros.
Na pele de “palhaço bonito”, como gosta de se caracterizar enquanto drag queen, este momento trouxe-lhe alguma esperança na evolução da sociedade. Com um especial brilho nos olhos – e não me refiro à maquilhagem –, termina “tomara que todas as pessoas do mundo fossem como aquele casal”.