Redes digitais são fundamentais para o ativismo feminista contemporâneo
- Diana Loureiro
- 27/10/2021
- Atualidade Especiais Internacional Portugal
Uma reflexão sobre o papel das redes digitais na contemporaneidade do ativismo feminista foi o assunto abordado na apresentação de Carla Cerqueira, no primeiro dia do Seminário Internacional sobre Ativismo em Rede e Plataformas Colaborativas, realizado nos dias 14 e 15 e outubro na Universidade Lusófona do Porto.
[Texto de Diana Loureiro e Rui Ribeiro| Fotografia de Diogo Azevedo]
“Pensar o ativismo feminista na atualidade e na sua pluralidade implica uma reflexão sobre o seu caráter transnacional, materializando em diversos movimentos e ações que têm sido organizados no meio digital, nas ruas ou mesmo no cruzamento destes dois espaços.” Foi assim que a investigadora Carla Cerqueira iniciou a sua apresentação sobre “Ativismo feminista transnacional: reflexões em torno da dororidade das lutas”.
A também professora universitária, especialista em questões de género, explicou que o feminismo teve diferentes momentos: de nascimento, retração e ampliação, mas que a transnacionalização do ativismo feminista, para além de funcionar de forma local, veio do uso da rede. Consigo trouxe dois exemplos de movimentos cuja expansão foi possível graças à ajuda das redes digitais: o primeiro, a SlutWalk, e o segundo, a Rede 8M.

SlutWalk – A Marcha das Galdérias
Como primeiro exemplo, Carla Cerqueira trouxe para a reflexão o movimento SlutWalk. A SlutWalk — em português Marcha das Galdérias —, é um movimento transnacional que objetiva combater a culpabilização das vítimas de violência sexual, de afirmar a auto-determinação das mulheres sobre os seus corpos e de reivindicar que a sexualidade é política, incluindo o victim-blaming e o slut-shaming. As e os participantes protestam, especificamente, contra o facto da aparência de uma mulher ser justificação para qualquer caso de violência sexual.
A Marcha das Galdérias começou no dia 3 de abril de 2011, em Toronto, no Canadá, depois de um agente da polícia dessa cidade ter sugerido que as mulheres deviam evitar vestir-se como “galdérias” (“women should avoid dressing like sluts”) como precaução contra agressões sexuais. A partir daí, sucedeu-se uma série de marchas a nível mundial, incluindo no Porto.
A Slutwalk traz para o debate problemas públicos, como o questionamento das normatividades físicas e simbólicas da mulher, e a complexidade dos feminismos na contemporaneidade. Mas a situação de privilégio ou opressão não é estanque, as mulheres da universidade de Toronto podiam pertencer a uma classe privilegiada, mas foram colocadas numa situação de opressão, explicou a oradora. “O feminismo não pode ser encarado como um movimento monolítico”, reiterou Cerqueira, referindo-se quer ao facto de existirem vários feminismos, quer à importância da interseccionalidade neste movimento. Ou seja, a investigadora convoca a urgência de se trazer para a reflexão as várias matrizes de dominação e subordinação, de desigualdades e privilégios.
8M – International Women’s Strike – Greve Internacional de Mulheres
Outro dos assuntos abordados na comunicação foi a Greve Internacional de Mulheres da Rede 8M. Trata-se de um movimento global, coordenado em mais de 50 países, que coincidiu com o Dia Internacional da Mulher, no dia 8 de março de 2017 e de 2018.
Já em 2016, houve uma uma greve nacional feminina na Polónia, após o parlamento polaco decidir que iria considerar criminalizar todas as interrupções voluntárias da gravidez, ficando este dia conhecido como Black Monday. Nesse mesmo ano, aconteceu o protesto #NiUnaMenos contra o feminicídio na Argentina, uma resposta em grande escala ao assassinato de Lucía Pérez, de 16 anos. Manifestações semelhantes ocorreram noutros países da América Latina, incluindo México, El Salvador, Chile, entre outros.
Vários grupos de mulheres na Polónia, incluindo a All-Poland Women’s Strike, que organizou os Black Protests contra a proposta que iria alterar a lei de aborto polaca em 2016, juntamente com ativistas dos direitos das mulheres argentinas lançaram a Greve Internacional das Mulheres em 2017. Os grupos polacos e argentinos coordenaram discussões, usando software de closed-source e tecnologia Voice over Internet Protocol, junto com mulheres de 28 outros países para preparar a greve.
Tanto a Slutwalk como a Rede 8M não teriam sido possíveis sem este mundo de redes digitais que traz novas possibilidades e novos espaços, empoderando pessoas. “Quão diferentes são estes novos movimentos feministas das formas anteriores?”, questiona Carla Cerqueira na sua apresentação. Mais adiante, lê-se: “e que diferenças e continuidades dividem e unem as gerações, as diversas mulheres/pessoas que integram estes movimentos?”. Mais: “quais são as vozes que ganham expressão e as lutas que conquistam visibilidade e reconhecimento público?”

Fotografia: Diogo Azevedo
Carla Cerqueira apresentou também quatro conceitos que implicam desde logo discussão entre si, pensando numa pluralidade de ações e agendas. O primeiro: o da “Temporalidade Afetiva e Cuidado”. A temporalidade afetiva remete para Prudence Chamberlain — uma das principais teóricas da quarta vaga do feminismo no Reino Unido—, autora que defende que o feminismo deve desenvolver os seus próprios métodos para registar o passar do tempo, nos quais o ativismo passado e as aspirações futuras tocam no momento presente. Por meio dessa temporalidade singular, o feminismo pode abrir espaço para laços afetivos e criar momentos intensos de ativismo. Por sua vez, a noção de cuidado remete-nos para Sara Ahmed: “Protest can be a form of self-care as well as care for others: a refusal not to matter“. Traduzindo: “o protesto pode ser uma forma de autocuidado, bem como cuidado para com os outros: uma recusa a não se importar”.
Cerqueira constata, portanto, que “não podemos estar nas lutas se não tivermos este autocuidado de nos importarmos connosco e com os outros”.
O segundo ponto, o da Interseccionalidade, foi a base para reflexões sobre de que forma se poderá passar a voz a mulheres mais oprimidas, que tenham diferentes lutas interseccionais, aliado ao sentido de escuta e lugar de fala. As opressões e desigualdades ocorrem a nível sistémico e estrutural numa base multidimensional não hierarquizada e é fundamental que os feminismos deem palco a estas diferentes lutas.
Um dos exemplos enunciados pela investigadora foi o caso da brasileira Marielle Franco, a qual foi vereadora do Rio de Janeiro, Brasil, para a Legislatura 2017-2020, mas foi assassinada em circunstâncias que ainda estão sob investigação. A também socióloga defendia o feminismo, os direitos humanos e criticou a intervenção federal e a polícia militar no Rio de Janeiro, denunciando vários casos de abuso de autoridade. Foi, também, uma ativista feminista interseccional, afrodescendente e membro da comunidade LGBTQIA+.
O terceiro ponto foi a “Dororidade” (diferente de Sororidade), um termo cunhado por Vilma Piedade. Dororidade é a empatia das mulheres afrodescendentes ligada pela dor comum. “Somente a proposição de um novo conceito que inclusive advém de uma nova palavra é um ato contra o machismo presente na vida e, também, nas Universidades”, explicita a especialista em questões de género.
“Dororidade é a dor que se transforma em potência”
Vilma Piedade
O quarto ponto, o “Ativismo Feminista Transnacional Enquanto Processo de Descolonização”, remete-nos para as diversas práticas insurgentes de resistir, (re)existir e (re)viver de Catherine Walsh.
No final da sua apresentação, Carla Cerqueira interrogou-se de que forma uma mulher cis-branca académica poderá dar palco a pessoas mais oprimidas, tendo em conta estes quatro conceitos, deixando estas reflexões e inquietações no ar para alimentar o debate da contemporaneidade.