Reforço da criatividade em tempos de crise
- Daniela Couto
- 04/06/2020
- Atualidade Portugal
Por Daniela Couto
As medidas que têm sido tomadas para salvaguardar a saúde pública devido à Covid-19 estão a ter um impacto no setor cultural. Com o encerramento de inúmeros espaços culturais como os museus, salas de exposições, cinemas e serviços educativos nesta área, houve a necessidade de se reinventarem e apostarem nos meios digitais para superar os desafios provocados. Maus Hábitos, Fundação de Serralves e o Instituto Português de Fotografia, mas também o Jornalismo Cultural são exemplo do incalculável valor da cultura, principalmente, em tempos em que é exigido o isolamento social.
Maus Hábitos é um espaço interdisciplinar de intervenção cultural, onde “a cultura e a arte não têm de ser bem-comportadas”, define o diretor do espaço há 20 anos, Daniel Pires, 53 anos. O local oferece condições para acolher artistas, espetáculos e exposições de criação pura que mantêm uma programação artística ativa. É já considerado uma referência na cidade do Porto. Para além disso, concentra uma série de serviços que asseguram a sua sustentabilidade: restaurante, bar e projetos externos.
“Passamos por processos muito difíceis para poder licenciar e ter um projeto desta natureza num edifício com 80 anos, num quarto andar”, aponta Daniel Pires.
Durante 14 anos lutaram pela licença de utilização, porém mantiveram sempre o espaço aberto, o que deu azo a muitas multas e processos em tribunal, portanto, “seria um projeto condenado a não vingar”. Agora com 20 anos de existência e com o local legalizado, enfrenta um novo desafio: a Covid-19, que os obrigou a fechar durante quase 3 meses desde o dia 14 de março.
“Todas as situações de crise são sempre situações de grandes oportunidades”, reflete o diretor.
Num momento em que foi pedido o isolamento social, vários espaços começaram a reinventar-se e a utilizar os meios digitais para proporcionar um escape aos cidadãos. O Maus Hábitos disso é exemplo, com aposta em sessões dedicadas ao cinema, artes visuais e performativas, no site e nas redes sociais, para demonstrar a “vitalidade do espaço e a energia de quem trabalha nele”.
Em colaboração com a “Saco Azul” (a associação cultural sem fins lucrativos que circunda e define a programação artística do Maus Hábitos), é apresentado ao espectador “Hábitos de Quarentena”, com podcasts de festas que iriam ser realizadas no espaço físico, as “entre-vistas” com artistas que “despertam a curiosidade, que não seriam possíveis de acontecer com um guião” e a “Mupi Gallery” que desafia e apoia a criação de novas obras por parte de artistas convidados.
Os cidadãos são ainda incentivados através da rubrica “#obratório” a captarem uma obra de arte que tenham em casa e a publicarem nas redes sociais, “para que transitem da intimidade das casas para o espaço público”, realça o diretor.
“Tudo isto são despesas, mas pequenas comparativamente ao impacto que podem ter”, revela Daniel Pires.
Apesar de considerar as plataformas digitais essenciais, sobretudo neste momento, o empresário refere que não há nada que substitua o espaço físico. Dá o exemplo de uma situação limite: as visitas a exposições realizadas online, com o recurso a uma câmara e um microfone. A facilidade é nítida, no entanto, é algo que considera contranatura: “ir ver uma exposição é uma experiência individual, mas muito enriquecida quando se consegue sentir a peça e discutir com alguém sobre a mesma”.
A Fundação de Serralves e o programa SOLE
Um dos locais que está também a apostar nas visitas virtuais às exposições é a Fundação de Serralves. Para “desobedecer” ao confinamento obrigatório, a equipa de Comunicação e Marketing da Fundação transformou Serralves numa instituição sem paredes e concentrou-se na experiência dos conteúdos gratuitos exclusivamente online denominado “SOLE- Serralves Online Experience”.
Com as portas fechadas ao público desde 13 de março, dedicaram-se à preparação da nova exposição dedicada à artista Lourdes Castro para a reabertura a 18 de maio. Quanto à aposta no novo programa online, este permite “o acesso a uma grande variedade de conteúdos, atividades e iniciativas nas múltiplas áreas da Fundação”, declara a diretora-adjunta do Museu de Serralves, Marta Almeida, 51 anos.
Neste programa é ainda destacada “a obra do dia” da coleção de Serralves, citações de artistas, filmes e as espécies da flora e fauna do parque de Serralves. Diariamente é elegida uma fotografia do espaço captada por um visitante e permitem o acesso a várias obras a partir de uma galeria virtual.
A diretora-adjunta do Museu de Serralves realça também a necessidade que sentiram em transmitir todo o seu conhecimento para as pessoas, ainda que através do mundo digital. As rubricas “Serralveensina” e “#Aprenderemcasa” permitiram partilhar atividades artísticas e ambientais, jogos, páginas para colorir, vídeos educativos, entre outros.
Instituto Português de Fotografia, o ensino à distância
Uma entidade que também está a lecionar mesmo à distância é o Instituto Português de Fotografia (IPF). Com mais de cinco décadas de ensino de Fotografia em Portugal e responsável pela formação da grande maioria dos fotógrafos do país, perceberam que era “impensável continuar no formato presencial com o risco evidente de contacto entre todos”, refere a coordenadora do IPF, Gabriela Silva, 44 anos. Assim a 10 de março encerraram as instalações em Lisboa e no Porto.
“O bem-estar da comunidade IPF é o maior valor que temos e não podíamos pôr em causa”, expõe a coordenadora.
Com as instalações fechadas, foram criadas de imediato soluções alternativas e ajustes para a continuação dos projetos em formato online. Após uma semana já tinham um plano curricular adaptado “ao espaço físico da casa de cada um e tornou-se um maior desafio fazer trabalhos, mas a comunidade IPF «com-unidade» conseguiu responder de forma célere ao desafio que a pandemia colocou”, afirma Gabriela Silva.
Mas as adaptações não se limitaram apenas aos formandos. Através das redes sociais foram criados desafios fotográficos para o público em geral, em que “lançamos um tema e as pessoas interpretam-no e trabalham-no fotograficamente”. Como recompensa do trabalho, no final de cada semana é oferecido um vale de formação à melhor fotografia, para além de disponibilizarem e-books e vídeos sobre as áreas específicas da fotografia realizados pelo IPF.
O objetivo é despertar a curiosidade das pessoas pela fotografia mesmo que confinadas a um espaço. A coordenadora explica que a distância física foi um fator de aproximação emocional e o IPF sentiu a necessidade de criar laços com os indivíduos e oferecer através “desta arte apaixonante que é a fotografia” uma melhor resposta a quem procura a instituição.
Várias foram as instituições que, tal como disse a coordenadora do IPF, “do pouco se fez muito”. Num momento em que as locais culturais tiveram de encerrar portas, rapidamente encontraram nos meios digitais uma forma de continuar a transmitir o conhecimento e de produzir conteúdos.
E qual a situação do Jornalismo Cultural?
“O Jornalismo Cultural enfrenta, apesar de tudo, menos desafios do que aqueles que ameaçam a própria sobrevivência da produção cultural”, destaca Inês Nadais, 43 anos, editora da secção de cultura do Jornal Público.
A jornalista começa por explicar que, inicialmente, os jornalistas desta editoria entraram em pânico pela possibilidade de ficarem sem conteúdo, mas rapidamente se revelou exagerado, uma vez que até “a diminuição abrupta da cadência da agenda cultural se tornou ela própria um assunto”.
O grande desafio passou a ser a velocidade de acompanhamento das mutações da paralisação da atividade cultural, mas também de “defender, na prática editorial quotidiana, que a cultura não é um assunto menor, mesmo numa situação de emergência sanitária como a atual”. Ao mesmo tempo, tentaram produzir conteúdos da secção de cultura-Ípsilon do Público que possibilitassem novas leituras e contextos para “fugir à realidade totalitária da pandemia”. Tudo isto fez aumentar a frequência de publicações.
Com o desaparecimento total das críticas dos espetáculos ao vivo, a secção começou por organizar os conteúdos de especial interesse sobre o contexto de pandemia atual nas rubricas “Os dias do coronavírus”, onde noticiam adiamentos, cancelamentos, medidas de emergência, artigos de reflexão e reportagens sobre o impacto na cultura, e “Ficar em casa”, que conta com sugestões de atividades culturais disponíveis no online. A redação também tem, como prática da casa, a preocupação de antecipar o desconfinamento dos vários serviços culturais.
Para os jornalistas do Público, em particular da secção cultural, a situação de pandemia está a ser “um poderoso estimulante”. A editora confessa que a gravidade da situação, o seu caráter inédito e a carência informativa dos leitores, “aguçaram a nossa curiosidade profissional” e o “sentido de responsabilidade e de missão”.
O Jornal Expresso também se reinventou neste novo período. Apesar de terem superado o desafio de manter conteúdos relevantes num momento de isolamento social, João Salvador, 29 anos, jornalista na secção de cultura, refere que é preciso ainda mais cobertura jornalística, como “conversar com agentes culturais, perceber a situação dos artistas e falar com pensadores sobre o momento que vivemos”.
Mesmo com a redação em teletrabalho, a equipa aumentou a oferta e a cobertura dos conteúdos culturais online e produziram artigos que promovam o bem-estar dos cidadãos.
João Salvador considera que o grau de exigência aumentou, porém o “feedback dos leitores cresceu, pois estão mais atentos e com mais tempo para reagir ao nosso trabalho”. Refere que o segredo num momento como este é acompanhar a realidade ao minuto e ter boas fontes.
No grupo Time Out em Portugal foi necessária uma readaptação do próprio ADN. Uma vez que as revistas do Porto e Lisboa vivem, essencialmente, do que acontece nestas cidades, “seria imprudente e irresponsável incentivar o leitor a continuar a fazer uma «vida lá fora» enquanto vivemos um tempo de pandemia”, explica a diretora da Time Out Porto, Mariana Pinheiro, 34 anos.
Com criatividade e engenho alteraram a designação de Time Out para Time In, com a finalidade de instigar o leitor a ficar em casa, oferecendo conteúdos úteis que proporcionem o bem-estar às pessoas mesmo que confinados (desde noticiar restaurantes que fazem serviços take-away, atividades de jardinagem até à apresentação de espetáculos culturais online). As edições impressas foram suspensas e criaram esta revista digital e gratuita que junta as duas cidades.
O incalculável valor da cultura em tempos de exceção
De acordo com os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2018, mais de 130 mil pessoas trabalhavam na área cultural. Este número inclui a atividade nas artes do espetáculo, arquitetura, criação artística, literária, edição de livros, jornais, revistas, vídeos, atividade televisiva em geral, publicidade e ensino. Como se percebe está em causa um setor importante da atividade nacional, com enorme impacto no emprego, na atividade económica e social.
O tempo é de incerteza e promete uma recuperação lenta. Com o decréscimo da atividade económica global e o aumento exponencial dos custos do Estado e das empresas, existe a possibilidade do desinvestimento da Cultura. Resta às instituições continuarem a apostar nas soluções encontradas para proteger o sistema cultural e garantir um retorno forte.
“Houve muitas guerras no mundo e são só por uma coisa: para as pessoas defenderem a sua cultura, e depois da guerra a única coisa que sobra é a cultura”, termina Daniel Pires.
No ponto de vista do diretor do Maus Hábitos, a cultura portuguesa é frágil, pouca apoiada e vista numa lógica de despesa, algo que considera errado, porque “apostar na cultura é um investimento e não um gasto”.
Quanto mais se apostar na cultura, mais capacidade considera que teremos para lutar contra qualquer dificuldade que se imponha no nosso caminho, como uma pandemia ou guerra, porque esta veicula “outras formas de ver, mostra como pensar e dá-nos utensílios para começar de novo”.