Rua Justino Teixeira, uma rua a desaparecer?
- Bruno Borges
- 27/06/2023
- Especiais Fotografia Híbridos Multimédia
Essa é pelo menos a inquietação de alguns moradores e trabalhadores, perante as grandes mudanças que a rua tem vindo a sofrer, sobretudo nos últimos cinco anos. Joaquim Cardoso e Alice Afonso, moradores na Rua Justino Teixeira, e José Pinto, mecânico na Garagem Universal, notam algumas dessas alterações que têm vindo a descaracterizar esta via histórica: obras para alargamento de passeios, supressão de estacionamento, perda do sentido de comunidade.
[Texto e imagens de Teresa Beleza e Bruno Borges]
Tradicional, acolhedora e cheia de silêncio. São algumas características que se evidenciam ao longo da rua Justino Teixeira. Num local que em tempos viveu da indústria, sobram apenas memórias e testemunhos de uma rua que já quase não existe. Quem caminhar por ela, encontrará Joaquim Cardoso de cachimbo na mão e com um ar muito sério. Com 86 anos, “natural de Penafiel e ex-combatente” na guerra Ultramar em Angola — e sob o regime ditador e Portugal é assim que Joaquim se apresenta.
Com apenas 7 anos mudou-se de Penafiel para o grande Porto para a rua Monte da Estação, paralela à rua Justino Teixeira. Permaneceu ali até voltar de Angola. Janeiro de 1974 é a data que marca a mudança de Joaquim Teixeira para a rua Justino Teixeira, 3 meses antes da revolução que terminou com 48 anos de fascismo.
Joaquim recorda os tempos em que era estudante na escola da Lomba, em Ramalho. Esta escola era a mais perto que existia da rua Justino Teixeira. “Foi pobre, só estudei até ao 2º ano do ciclo preparatório.”
Joaquim relembra os tempos em que brincava nas composições de comboios que passavam em Campanhã. Apesar da pobreza que se vivia na altura, nota, o senhor de 86 anos recorda as saudades que tem desses tempos e sorri com um olhar distante.
De forma eufórica, à sua medida, Joaquim retrata a rua de onde morava no dia de São João, festa dos santos populares na cidade do Porto. “Era um pandemónio, a travessa de cima rivalizava com a de baixo, estava tudo decorado, era mesmo popular.”
Mas, repara que “a guerra veio mudar tudo”. Joaquim muda de tom e diz ainda que foi de facto um ponto de viragem da animação e movimento da rua. “Trouxe muita coisa, talvez mais más do que boas”, vai recordando, à procura da descrição certa para ilustrar um tempo que parece muito longínquo, mas marca também o presente.
É neste momento da conversa, que este homem viaja temporalmente e revela as grandes indústrias e armazéns de vinho e alimentação que fecharam, mas que na altura eram os negócios predominantes na rua.
A esposa de Joaquim, quase de uma forma intrusiva, espreita pela varanda. Sempre à cuca, vai evidenciando inquietação. Com um olhar desconfiado, mas atento, ouvia tudo o que o seu marido contava. Joaquim repara que ela está a escutar e relembra que a sua esposa trabalhou muitos anos na rua Justino Teixeira, num dos muitos armazéns de vinhos que ali existia.
Contudo, diz que atualmente já não existe praticamente nenhum negócio desse tipo, restando apenas algumas oficinas e um armazém de vinhos, “Até o restaurante aí de cima, “Os compadres” fechou quase sem dizer nada a ninguém, isto está a morrer…”
“Até o restaurante aí de cima, “Os compadres” fechou quase sem dizer nada a ninguém, isto está a morrer…”
Joaquim Cardoso
Joaquim diz que nunca passou muito tempo na rua. Trabalhou sempre fora e esta funcionava apenas como local de habitação. “Só venho aqui comer e dormir”. Apesar disso, não deixa passar os quase 50 anos de vivências na rua como indiferentes ao dizer que não se daria bem noutro local e assumir a preferência para viver na rua, “A minha relação com a rua é boa, é suportável, não sei se me daria bem noutros local… prefiro viver aqui. “
“A minha relação com a rua é boa, é suportável, não sei se me daria bem noutros local… prefiro viver aqui. “
Joaquim Cardoso
Maria Alice, costureira, mora e trabalhou na rua Justino Teixeira
Neste dia, sente-se já os primeiros ares de primavera, escuta-se passarinhos e a aragem morna a chamar para que as pessoas saiam de casa. Descendo a rua, à porta do número 283 da rua Justino Teixeira, é possível encontrar Maria Alice Afonso.
À janela da casa coberta por azulejos, a mulher natural de Valença do Minho, vê e fala com quem passa, dizendo: “Bom dia, ide com Deus”.
Residente há largos anos na Rua Justino Teixeira, veio para a casa onde habita, depois de pedir ao seu marido Aníbal de Sousa Afonso, para vir morar para o Porto, depois de este ter sido contratado para trabalhar nos caminhos de ferro. “O meu falecido marido veio trabalhar aqui para o Porto para o caminho de ferro e eu disse-lhe: quero ir para o Porto, quero que me arranjes lá uma casa. E ele arranjou-me esta casa.”
Com os olhos lacrimejantes, Maria Alice recorda a sua história de vida. Costureira durante uma vida, sempre trabalhou com arranjos costurais, a partir de casa na Justino Teixeira. Tristeza nas memórias e no olhar.
Em poucas palavras e até com alguma indiferença, esta mulher diz que gosta de morar na rua Justino Teixeira, talvez pelo hábito de estar lá há muitos anos, mas quase como forma de mudar a conversa, recorda com saudade a sua terra natal e a casa onde cresceu e viveu até vir para a rua Justino Teixeira.
Viúva do senhor Aníbal de Sousa Afonso, relembra-o com muita saudade e desalento daquele que em tempos foi o seu companheiro de vida.
“O meu falecido marido veio trabalhar aqui para o Porto para o caminho de ferro e eu disse-lhe: quero ir para o Porto, quero que me arranjes lá uma casa. E ele arranjou-me esta casa.”
Maria Alice
André e José: irmãos Pinto na Garagem Universal
Subindo a rua, encontra-se a oficina de carros “Garagem Universal”. Ao entrar, percebe-se que o espaço é húmido e escuro, com um cheiro predominante a óleo de motor. A única luz era a de uma pequena lâmpada que estava por cima da mesa onde estão as ferramentas e, claro, a luz natural que entrava pelo portão da oficina. Lá dentro, perto de um carro, estão dois homens: André e José Pinto, irmãos.
André é mecânico na Garagem Universal praticamente desde que ela abriu, há mais de 30 anos, estava acompanhado pelo seu irmão mais novo José Pinto. José, já reformado, conta que visita o irmão quase todos os dias para manterem a conversa em dia e para relembrarem os “bons e velhos” tempos na rua Justino Teixeira.
Com a voz quase trêmula, os 2 irmãos dizem que há alguns anos atrás passavam muitas mais pessoas do que passam agora. O fecho e a deslocação de armazéns e fábricas são os motivos apresentados pelos irmãos para o diminuir das pessoas na rua. “Muitos armazéns, fábricas que hoje já não existem. Alguns fecharam e outros mudaram”, afirma André Pinto.
“Muitos armazéns, fábricas que hoje já não existem. Alguns fecharam e outros mudaram”
André Pinto
A nova pavimentação da rua é, no entanto, a maior queixa apresentada por André e José Pinto pois para além de não terem melhorado a afluência à rua, ainda a conseguiram diminuir. “As novas obras não trouxeram mais gente” segundo André, já José afirma que trouxeram um problema grave à rua: a falta de estacionamentos causada pelo alargamento do passeio, realçando que este alargamento não ajuda em nada o peão, relembrando que o passeio estava em boas condições, “Isto de alargar os passeios é um problema muito grave porque não vai ajudar nada o peão,é só teoria porque o passeio estava bom e tirando o estacionamento é andar para trás.”
“Isto de alargar os passeios é um problema muito grave porque não vai ajudar nada o peão,é só teoria porque o passeio estava bom e tirando o estacionamento é andar para trás”
José Pinto
Perante os olhos destes dois irmãos, a rua tem vindo a modificar de ano para ano. Negócios saem, caras novas estão só de passagem e a rua vai ficando cada vez mais vazia, “Havia um grande armazém aqui ao lado que agora é um prédio habitacional. Tinha a Matinha em lá embaixo, onde trabalhava muita gente, que fechou”
“Havia um grande armazém aqui ao lado que agora é um prédio habitacional. Tinha a Matinha em lá em baixo, onde trabalhava muita gente, que fechou”
André Pinto
São poucas as pessoas que passam na rua Justino Teixeira, atualmente as únicas que por lá se veem, são os estrangeiros, que Campanhã acabou, inevitavelmente, por aproximar da rua. Mantêm se ainda, com algum esforço, um pequeno número de indústrias