Ruínas e negócios locais são coordenadas de um lado mais invisível da Rua Justino Teixeira
- Enzo Favero
- 27/06/2023
- Especiais Híbridos
Casas de alojamento local, fábricas em ruínas, negócios de família e informais, vielas e atalhos que se escondem ao redor da Rua Justino Teixeira. Durante o século XX, teve um papel fundamental no crescimento do comércio da freguesia de Campanhã. Hoje, restam poucos vestígios dessa época. O #infomedia foi à procura dessas invisibilidades que mantêm viva esta rua histórica.
[Enzo Favero Teixeira, Débora Oliveira, Catarina Ferreira e Inês Diana Silva]
O sol estava intenso na rua Justino Teixeira, na tarde do dia 12 de maio de 2023. Aos olhos dos transeuntes mais desatentos até se evidencia o comércio mais comum ao longo da artéria, como os cafés. Mas quem caminha mais atento, repara nas ruínas abandonadas que traçam o trajeto de cima a baixo da rua Justino Teixeira, freguesia de Campanhã, no Porto, e que outrora foram morada dos primeiros negócios a aparecer por ali. Para além desses escombros, junta-se também as lojas menos atrativas como oficinas de automóveis e alojamentos locais escondidos atrás de fachadas de casas comuns.
De maneira paulatina, o forte comércio foi esvaindo-se da Rua Justino Teixeira ao longo dos últimos anos, seja por motivos financeiros, como os armazéns de vinho que passaram por lá, seja por motivos empresariais, com empresas que optaram por encerrar as atividades na região e abrir uma sede noutro local mais atrativo. Ou ainda devido a desastres naturais, como incêndios.

O surgimento da rua como a conhecemos hoje acontece a 10 de abril de 1929, no que seria o 94º aniversário de Augusto César Justino Teixeira, engenheiro ferroviário, caso fosse vivo, na época, e a quem se deve o nome desta via, numa homenagem do munícipio ao seu trabalho.
Rua de Justino Teixeira “É amanhã, quarta-feira (10 de Abril), que se realiza o descerramento da placa que dá o nome de “Justino Teixeira” à actual Rua Nova da Estação. “Às 3 horas efectuar-se-á uma sessão solene da casa nº 97 da referida rua, seguindo-se o descerramento.” “A estes actos assistem as pessoas de família do saudoso general Augusto César Justino Teixeira, as colectividades ferroviárias e os internados do Aliso do Terço, com a respectiva banda.” “(Do jornal “O Comércio do Porto”, de 9 de Abril 1929).” |
De primordial para o comércio portuense à invisibilidade toponímica, a Rua Justino Teixeira é repleta de histórias com vozes abafadas pelo abandono e, também, pela pressão imobiliária e desenvolvimentista que a cidade tem vivido. É o caso de Fernando Lopes, dono do Minimercado Stop, localizado frontalmente à estação de Campanhã. Com muita simpatia, conta todo o percurso de reinauguração da mercearia que ali está há 20 anos. No seu comércio, seu foco sempre foi cumprir o papel de um mercado da região, para suprir a ausência deste ramo que há nas proximidades.
Numa viagem nostálgica pela sua memória, Fernando Lopes partilha com muita vivacidade as brincadeiras que fizeram parte da sua infância. Dentre elas, não esquece os muitos golos que marcou em balizas feitas com tampinhas de água. O desporto foi tão presente na vida de Fernando, que o futebol acabou por se tornar algo que praticava para competição. Quando jovem, juntava dinheiro com os seus amigos para comprar equipamentos e montar equipas para representar a rua Justino Teixeira e ir enfrentar outras ruas do Porto. Passadas décadas, lamenta que os seus filhos e netos não possam ter tido a mesma experiência.
Com uma vida inteira dedicada ao trabalho na região de Campanhã, Fernando Lopes traçou um mapa mental do início ao fim da Rua Justino Teixeira antes dos escombros e abandonos das fábricas e armazéns. Sempre muito movimentada, o comércio era forte durante a década de 90 do século XX.
Fora das câmaras, através do seu telemóvel, Fernando Lopes recordou de maneira saudosa os tempos antigos da rua e mostrou-nos uma fotografia de como era o cais que ocupava a região do atual terminal de Campanhã.

Fotografia: Arquivo pessoal de Fernando Lopes
Ao sair da mercearia, caminhando em direção a Justino Teixeira colide-se com a aceleração e ritmo frenético dos passageiros que saem dos seus trabalhos e se dirigem para o terminal intermodal de Campanhã. Os moradores, repousados nas janelas, espiam o movimento e alguns gatos que ali passam.
Em todas as visitas à rua Justino Teixeira, o Auto Check Center, estabelecimento de reparos de automóveis, é o que mais chama a atenção. Seja pelo barulho incessante dos operários a trabalhar, ou pelo grande pátio repleto de carros com motores ruidosos.
Inicialmente era um negócio de família e hoje é liderado por José Teixeira. A sua infância esteve ligada à Justino Teixeira. Nascido em 1968, relembra, ao lado da irmã, que a sua história na rua começou cedo. “Nas férias vinha para aqui ajudar o pai, na altura tinha de 12 a 14 anos.”
José Teixeira, ao longo de seus 55 anos, viu todos os altos e baixos que a Rua Justino Teixeira viveu, seja o período tranquilo da década de 80, até a explosão de movimento e tráfego que ocorreu na década de 90 e seu declínio recente.
A economia foi decisiva para a queda de movimento da rua. Os armazéns de vinho foram falindo e as outras fábricas mudando de lugar. Com essa fuga de capital na rua, o movimento passou a ser muito reduzido, o que afetou todo o ecossistema económico da rua.
Os desastres naturais também assolaram a rua. José Teixeira conta que houve um incêndio exatamente ao lado da oficina. “Era uma fábrica de meias. Foi mesmo ao lado da oficina. Aquilo incendiou e foi forte o incêndio. Aquilo ardeu e no nosso prédio ainda subiu um bocadinho.”
Contudo, este não foi o único caso. Em 2004, um armazém da marca “Oriente 2000” passou mais de 18 horas a arder, devido a grande quantidade de produtos inflamáveis que ali existiam. Com muita dificuldade, os bombeiros conseguiram extinguir as chamas, mas os danos foram significativos para a empresa, que não se reergueu e fechou as portas.
Não só a rua Justino Teixeira se destacou pelas empresas e fábricas presentes, mas também sua transversal, a Rua do Godim. José Teixeira elucida sobre as empresas que lá passaram, como a extinta gráfica Marca, que foi uma das mais modernas do país.
RUA DO GODIM O Casal de Godim, no couto de Campanha, é mencionado num emprazamento feito pela Mitra do Porto, em 1511, aos antepassados do boticário Baptista da Costa de Sá que, com muitos outros bens que possuía, o doou à Misericórdia para património da capela de S. João Baptista, que instituira na igreja da Santa Casa, em 1623. O topónimo é, porém, mais antigo, pois revela-nos a existência de um proprietário da reconquista cristã no século IX, ou pouco posterior, com aquele nome. Efectivamente, como ensina o Prof. J. Piel, Godim é um genitivo de Godinus, nome germânico hoje transformado no apelido Godinho. Por sua vez, o Godinus ou Gotinus provém de outro, Godo (feminino) ou Goda (masculino), com o sufixo, também germânico, eins. Mais um exemplo da notável persistência dos topónimos que não são inventados. |
Assim como Justino Teixeira, a Rua do Godim passa por um momento de declínio. Ao desbravar seus arredores, encontramos muitos terrenos baldios com a vegetação bem alta e alguns felinos que ali residem.
Com o evidente abandono da rua, uma das chaves para revigorá-la é aumentar o fluxo de transeuntes diários. Para isso, os alojamentos locais têm um papel primordial nessa pauta. Ao observar os arredores da Justino Teixeira, é possível encontrar uma movimentação de hóspedes, por vezes estrangeiros, que agregam culturalmente para o ambiente. Ao fazer uma breve pesquisa no Google sobre estadia na movimentada região de Campanhã, encontramos alguns apartamentos situados na rua Justino Teixeira. Os preços variam, com quartos anunciados por 46 euros diários ou até apartamentos por 267 por dia.
No Porto, segundo dados da Câmara Municipal, em fevereiro de 2023 existiam 9.975 alojamentos locais no munícipio. Em comparação com o número de habitações, que é 142.645, o rácio é de 7%. Na situação de Campanhã, o regulamento de AL da Câmara, aprovado em maio, caracteriza a região como “área de crescimento sustentável”, tendo um rácio de 1% entre alojamento locais e habitações gerais.
Além disso, esses negócios movimentam a economia local, gerando emprego e renda para a rua. É como diz Marta Carvalho, moradora de uma ilha na Rua Justino Teixeira e funcionária de limpeza num alojamento local ali situado.
Com o coração apertado, Marta conta-nos a difícil situação que vive em relação à sua moradia. Criada desde o nascimento na rua, teme perder sua casa a qualquer momento. Sente-se enganada e não tem a quem reclamar.
Estas são apenas algumas histórias caladas pelo abandono histórico que ocorreu na Rua Justino Teixeira, onde pessoas clamam por uma voz e reconhecimento, seja do direito à moradia ou até mesmo as memórias felizes. A invisibilidade acompanhada pelo descaso com os moradores da rua, que relembram tudo o que viveram ali nos arredores, traz a necessidade de reviver essas recordações.
O percurso de uma rua histórica não deve ser esquecido, para que não se percam as lembranças das vidas que por ali moram, trabalham ou visitam.