“Não há hora específica para ganhar um prémio”. A patologia das raspadinhas
Portugal é o país da Europa onde se gasta mais dinheiro em raspadinhas. Comprar, raspar e ser premiado já faz parte do quotidiano e pode tornar-se viciante.
Os ovarenses Ana Cruz, João Matos e Judite Lopes pertencem ao leque de portugueses que todos os dias compram raspadinhas. Contrariamente, Cátia Pimenta e José Vaz assistem e alimentam alguns comportamentos dos jogadores, enquanto vendedores de jogos.
Ana Maria Cruz tem 50 anos e é natural da terra que viu o Carnaval dar nome à cidade, Ovar. Na rua Viscondeza encontra-se o estabelecimento onde Ana compra diariamente parte das raspadinhas que joga. Conhecida pelo nome da própria rua, a padaria e pastelaria Viscondeza premeia várias vezes a ovarense, mas também a desaponta, retirando-lhe dinheiro do bolso. Reformada por invalidez e com 28 anos de trabalho numa serração, começou a apostar no jogo das raspadinhas devido à “necessidade de angariar dinheiro”.
A viver com o marido e uma filha, e apenas dois ordenados, Ana Cruz começou a aventura das raspadinhas há cerca de um ano. Tinha como objetivo conseguir ajudar a família nas despesas pendentes como “a liquidação do pagamento da casa e o conforto familiar”. É por entre vários preços que percorremos as diversas raspadinhas. 20x e dez x têm o custo de dois euros e um euro, preços que Cruz aposta em comprar. “Não gasto mais do que cinco euros por dia. Compro sempre duas raspadinhas de dois euros e uma de um euro”. Todavia, troca uma raspadinha por outra, quando esta tem prémio abaixo dos dez euros: “se a quantia que saiu não for acima de dez euros, troco a raspadinha por outra e não quero o dinheiro”. Caso aconteça o contrário, a ovarense prefere ficar com o dinheiro.
É sentada no sofá da sala que Ana conta a sua experiência enquanto compradora de raspadinhas. Confessa ser uma mulher com sorte ao jogo: “não ganho nem perco. Anda ela por ela”. A prova da sua sorte é que em pleno mês de setembro foi premiada com a maior quantia que ganhou até aos dias de hoje: “sairam-me 500 euros numa raspadinha”. Além desse montante, a ovarense lucrou mais 100 euros na época natalícia, dia 24 de dezembro. “Ajudou a fazer face às despesas do Natal”.
De todos os jogos que a Santa Casa disponibiliza, a Lotaria Instantânea (lançada a 31 de julho de 1995, assumiu nova identidade sob a marca comercial “Raspadinha”, em março de 2010), é o único jogo em que Ana Cruz investe: “antes quero comprar raspadinhas do que empregar dinheiro noutros jogos, como o Euromilhões. Antigamente jogava e não saía nada e por isso deixei de investir”.
A sorte ao fundo do túnel
Em contrapartida, João Matos, além das raspadinhas joga também no Euromilhões: “guardo uma chave de aproximadamente dez anos”. A obstinação em jogar a mesma chave deixa Matos expectante. “Acredito que o mecanismo que utilizo, um dia dê sorte”. Brinca com a situação utilizando um provérbio: “tantas vezes vai o cântaro à fonte, que um dia lá deixa a asa”. Natural de Avanca (freguesia portuguesa do concelho de Estarreja e distrito de Aveiro), aos 45 anos João é motorista de pesados em transporte de mercadorias numa empresa chamada Mineira Transportes.
A percorrer as estradas de norte a sul de Portugal, o motorista revela que a profissão que exerce é propícia à tentação da compra: “devido ao meu cargo profissional, sempre que posso parar, seja para tomar café, seja para fazer outra coisa qualquer, se avistar que o estabelecimento tem jogo, peço à funcionária para me vender uma raspadinha”. Começou a jogar por uma questão de curiosidade: “saindo um primeiro prémio, a pessoa vai ficando aliciada na expetativa de que volte a sair um prémio mais alto”.
Tal como aconteceu com Ana Cruz, o maior prémio que João Matos tirou numa raspadinha foi 500 euros. “Isso não fez de mim uma pessoa diferente, isto é, se tiver de comprar outra raspadinha, compro. O facto de ter sido premiado com uma quantia razoável não é motivo para que volte a comprar outra raspadinha a seguir”, declara Matos.
Se o dinheiro é o que está na base do desenvolvimento do vício ligado ao jogo, ou seja, a necessidade de ter mais dinheiro para apostar ainda mais, João Matos afirma não comprar raspadinhas com o objetivo de ganhar algum valor monetário. “Eu não compro as raspadinhas com o intuito de obter alguma coisa com isso, pois não é a minha fonte de sobrevivência”, assegura, mas “claro que há sempre uma esperança de conseguir ser premiado”.
O estado de espírito influencia na compra de raspadinhas, confessa João Carlos.
Depende para o lado que esteja virado. Há semanas em que gasto apenas 20 euros, depois há outras semanas em que gasto só dez euros e se calhar até sou das pessoas que joga mais.
Há uma série de questões que se colocam a João Matos, sendo uma delas o porquê de investir mais dinheiro em raspadinhas do que em outros jogos que a Santa Casa disponibiliza. O motorista esclarece “que o jogo é mais rápido e mais barato. A pessoa compra e se tiver prémio, sabe que de imediato o recebe, exceto quando são quantias elevadas. Essas são por transferência bancária”.
Cátia Pimenta confirma o que o jogador avancanense acabou de dizer: “é o jogo que o cliente não tem de aguardar pelos sorteios, não tem hora específica para ganhar um prémio”.
É em frente ao balcão que Cátia Sofia Silva Pimenta de 24 anos está todos os dias. Visual Merchandising na loja Note, em Ovar, a colaboradora afirma que desde a altura que se estreou na loja, há quatro anos, apercebeu-se que “os clientes mais frequentes que tínhamos, eram os consumidores de jogo, independentemente de termos outros serviços, como livraria, CTT (correios de Portugal), entre outros”.
Estamos a poucos dias do Natal e a fila de pessoas não para de aumentar na loja. O meio envolvente é de azáfama e Cátia não consegue fazer uma pausa, visto que a compra de presentes é recorrente. O que não fica para trás é também o investimento nos jogos.
Raspadinha é presente de Natal
Pimenta conta que a época natalícia é exclusiva na venda de raspadinhas.
No Natal, a Santa Casa lança sempre uma raspadinha alusiva à época. É sempre presente, ou seja, é uma raspadinha com vários jogos de oferta e as pessoas aderem a isso.
Nesta altura observa-se algumas reações por parte das pessoas viciadas no jogo. A paciência para esperar numa fila interminável de indivíduos esgota-se e os comportamentos alteram-se. “Por norma é um ambiente de stress. De dez em dez minutos atendemos clientes de jogos e muitas vezes é o mesmo cliente”, expressa Cátia, acrescentando que, “vendemos cerca de 300 raspadinhas por dia, sendo que os valores são diferentes de raspadinha para raspadinha”.
Em três dias a Note faturou 2.020 euros em raspadinhas. A raspadinha de dois euros foi a mais vendida, sendo que a de dez euros teve menos aderência. Por este motivo, a colaboradora explica que o procedimento da encomenda de raspadinhas tem em conta um fator: “temos sempre presente, o pedido de raspadinhas de dois euros, pois são as que têm mais saída”.
A Visual Merchandising revela que a maior parte das pessoas consideradas viciadas em raspadinhas nem sempre possuem boas posses financeiras: “têm esperança de ganhar algum prémio que possa mudar a vida delas, não totalmente, mas que possa ajudar numa vida melhor”. Ainda assim, existem pessoas viciadas no jogo, mas têm uma boa qualidade de vida: “jogam às vezes porque gostam”. Para Cátia Pimenta, as pessoas investem em raspadinhas com o objetivo de conseguir algum retorno: “ficam sempre na expetativa que saia algum prémio”.
Lucro dos Jogos Santa Casa
Segundo o relatório e contas dos Jogos Santa Casa, as receitas brutas com a exploração dos jogos sociais atingiram, em 2020, 3.360 milhões de euros, um crescimento de 8,5% face à atividade de 2018. As apostas mútuas, como o Euromilhões, M1lhão, Totoloto e Totobola, desceram, ou seja, apenas conseguiram ganhar 908 milhões de euros, menos 6,9% que o ano passado. Em 2019, a Santa Casa distribuiu mais de dois mil milhões de euros em prémios.
Gráfico representativo dos valores monetários mais elevados pelas diferentes raspadinhas:
O eixo horizontal corresponde às diferentes raspadinhas que a Santa Casa disponibiliza e respetivo valor. No total são 11 variedades. A mega pé de meia e a 100x têm o custo de dez euros. A super pé de meia e a 50x têm o preço de cinco euros. A três euros existe a raspadinha pé de meia e recompensa. De seguida, com um montante mais baixo, existem as raspadinhas de dois euros, a 20x, a grande sorte e os presentes de Natal. Com o valor mais baixo encontra-se a raspadinha mini pé de meia e trevo da sorte, ambas custam um euro.
No eixo vertical situa-se os prémios mais altos que cada raspadinha já deu. A mega pé de meia já presenteou uma família com 504 mil euros, a 100x já premiou no máximo 250 mil euros. De cinco euros, a raspadinha super pé de meia tem como montante exorbitante 288 mil euros e a 50x já atribuiu 100 mil euros. A pé de meia brindou alguém com 180 mil euros e a recompensa de três euros ofereceu 30 mil euros.
As raspadinhas de dois euros, como a 20x, a grande sorte e os presentes de Natal já presentearam uma pessoa com 20 mil euros. A mini pé de meia conta com uma recompensa de 30 mil euros. Por fim, o trevo da sorte, com apenas um euro, conseguiu dar dez mil euros.
Comparativamente a Espanha e ao resto da Europa, Portugal apresenta números elevados. Os portugueses gastam em média 160 euros por ano em raspadinhas, o que reflete um número elevado de dependência monetária, disparando assim, o número de casos de pessoas com problemas de jogo patológico, adição ou vício do jogo, associado a raspadinhas.
O lado negativo do jogo
O jogo é uma competição, um meio complexo que proporciona muita felicidade às pessoas. Contudo, também é capaz de destruir famílias. Cátia Pimenta narra uma situação que presenciou no seu local de trabalho com uma cliente habitual: “ela gasta 200 euros a 300 euros em raspadinhas e nesse dia não foi exceção”, mas a situação não fica por aqui. A visual merchandising conta que “mãe e filha iam às compras de comida e nesse dia, como em todos os outros, passaram na loja para investir no jogo e passado uns 20 a 30 minutos, ouvi a filha a dizer à mãe que já não tinham dinheiro para irem às compras”. Por outro lado, Judite Lopes certifica que não se deixa levar com rivalidades no jogo, nem é influenciada por ninguém. Porém, confessa ser “picada pelo segurança do estabelecimento onde trabalha”. “Ele pica-me quando é premiado numa raspadinha e sabe que eu não sou. Depois andamos ao despique os dois”.
A perspetiva de quem trabalha perto de uma loja de jogos
Judite Maria Esteves Lopes tem 51 anos e é natural de Ovar. Funcionária da limpeza na empresa Sonae há 11 anos, é sentada à lareira que conta a sorte que tem com o jogo das raspadinhas. Cliente habitual da Note, em Ovar, loja que já a presenteou com várias recompensas.
É durante o horário de trabalho e depois, que Lopes tem a tentação de comprar raspadinhas: “não há um dia que não compre uma raspadinha, mais que uma vez no mesmo dia, uma vez que trabalho dentro do mesmo estabelecimento onde está a Note”. Gasta todos os dias 20 euros em raspadinhas, duas delas têm o custo de dez euros, enquanto que as restantes são de cinco euros. Informa que tem sido grata pelos bons prémios que tira, no entanto, assume ter uma estratégia: “observo muito as outras pessoas quando estão a pedir a quantidade de raspadinhas que querem comprar”. Acrescenta que: “se a pessoa comprar quatro raspadinhas seguidas do mesmo volume, a probabilidade de a quinta raspadinha ter dinheiro é muita”.
A ovarense confessa ficar irritada com as pessoas que saltam os números das raspadinhas, isto se pertencerem ao mesmo volume. “Se a pessoa que estava antes de mim comprar apenas duas raspadinhas, uma de cada ponta do volume, eu só compro uma. Depois volto mais tarde para comprar outra, isto é, ou compro as quatro seguidas ou só compro uma”. Apesar de ser cliente regular no jogo, revela que, por vezes, deixa de jogar em raspadinhas: “se andar um tempo em que veja que não sai dinheiro nenhum, desisto um tempo de comprar, mas depois volto ao mesmo”.
Equivalente a João Matos, estão as apostas que Judite faz no Euromilhões: “é raro jogar”. No entanto, quando joga, diz ter sorte, mas como há horas específicas para o sorteio, prefere investir em raspadinhas, pois têm um acesso mais fácil. Além do Euromilhões, a ovarense também compra a lotaria nacional, mas de igual forma esporádica.
Cauteleiro: a profissão invisível
José Carlos é testemunha de muitos casos com finais infelizes. “Conheço histórias de pessoas, de casais que se divorciaram porque o jogo das raspadinhas levou a família à ruína”.
Cauteleiro (vendedor de cautelas ou bilhetes de lotaria) há 35 anos, José Vaz de 67 anos exerce a profissão pelas ruas da cidade de Ovar. É em frente à Caixa Geral de Depósitos, por volta das 7h30 que encontramos o homem das lotarias e das raspadinhas.
Encostado ao muro e com a bicicleta ao lado, para ninguém a roubar, Vaz mete conversa com João Carlos. Aqui encontramos o senhor que alguns clientes dizem que sabe onde está o prémio nas raspadinhas, ao qual ele responde: “se soubesse já teria raspado e ficava com o dinheiro”.
A vender de forma autónoma, José declara que há uma compra excessiva de jogo: “em média vendo dez volumes de raspadinhas por dia”. Por semana, o Cauteleiro encomenda “30 a 40 volumes de raspadinhas”, mas às vezes não é o suficiente, pois há semanas em que a venda é maior, as raspadinhas esgotam e fica apenas com o negócio das lotarias. O pagamento do jogo é feito na hora, mas apesar disso, José conta por entre dentes que deixar pessoas a ficar a dever raspadinhas, é um ato isolado.
A quebra na lotaria é maior do que nas raspadinhas, pois não há venda significativa. Contudo, o maior prémio que deu foi numa lotaria, um milhão e duzentos mil euros. Exprime com um sorriso no rosto e com vaidade, que ainda é um dos poucos cauteleiros que comercializa raspadinhas: “dos poucos cauteleiros que ainda existem, quase nenhum vende raspadinhas, o que me ajuda a ter outra visibilidade”.
A cidade invicta foi o seu local de trabalho durante 30 anos, juntamente com Ovar. Descreve que entrou no comboio e deixou o Porto para trás: “a casa da sorte começou a falhar com o jogo e como eu tinha lotaria certa, eles não conseguiam fornecer a totalidade porque não tinham que chegue”. Posto isto, Ovar passou a ser o seu único refúgio de venda.
Foi após a morte do seu patrão na altura que José Vaz ocupou o seu cargo e passou assim, a exercer a profissão de cauteleiro. Antes, Vaz conta que era um ardina (vendedor de jornais de rua que pregoa a notícia e chama a atenção do potencial cliente). Até aos dias de hoje, já conseguiu fazer várias famílias felizes com prémios que angariaram no jogo, no entanto, consegue fazer também o contrário. O maior prémio que deu numa raspadinha foi de 500 euros, tal como receberam os jogadores Ana e João.