Futebol: “Há um critério para os profissionais e outro totalmente diferente para os amadores”
- Ruben Peixoto
- 22/01/2021
- Desporto Portugal
Num país onde o futebol significa tanto, acaba por ser interessante que tão poucas vezes vejamos abordadas as realidades de um clube amador nos nossos meios de comunicação. Como é que um clube consegue sobreviver numa distrital? Como é que a pandemia é combatida a esse nível?
Um novo confinamento
Eram já 19h00, a temperatura estava abaixo de zero em mais uma noite gelada, tão característica de Vila Flor. Minutos antes do início do treino, o treinador Gilberto e o responsável pela manutenção do estádio Gil Olmo, conversam sobre a atualidade do clube e o momento vivido por toda a sociedade portuguesa. Pouco depois, o presidente, Carlos Carvalho, junta-se à conversa. “A nível financeiro (a pandemia) causou muitos estragos. Clubes como o Vila Flor precisam das receitas de bilheteira, do bar no estádio e todos os eventos que o clube faz todo o ano, nomeadamente a barraca de bebidas que montamos durante a festa de verão, ou o pagamento de cotas por parte dos nossos sócios, que dada a situação não tem sido muito regular. Tudo isto é muito importante para pagar as despesas diárias, essas infelizmente é que nunca desaparecem”.
É com bastante orgulho que o presidente reconhece o trabalho feito por si e pela sua equipa no que toca a luta contra o vírus. Observando atentamente o treino, elogia também o trabalho feito pelos órgãos máximos do futebol no distrito de Bragança. “A Associação de Futebol de Bragança transmite sempre as orientações da DGS – Direção Geral da Saúde – para que, nos treinos ou nos jogos, os clubes possam treinar e jogar em segurança, cumprindo todas as medidas impostas. Felizmente no nosso clube, ainda não tivemos, até a data, nenhum atleta ou dirigente infetado, mas ninguém está livre disso. O nosso plano de contingência é bastante rigoroso em todos os aspetos, temos que estar conscientes e preparados, porque de facto, pode acontecer”.
A bola já rola no campo, depois de uma distribuição de coletes, dividindo o grupo em dois, os jogadores começam a competir, com a sombra de um novo confinamento cada vez mais próxima, que traz mais consequências ao futebol distrital. “Toda a estrutura tem que estar preparada para confinamentos obrigatórios, para a eventual paragem do campeonato, mas a meu ver, parar outra vez não será nada benéfico, particularmente financeiramente. Para quem já perdeu as suas receitas durante o primeiro confinamento, parar outra vez, irá trazer consequências potencialmente catastróficas. Vai requerer ainda mais custos.”.
Se gerir um clube com a dimensão do Vila Flor, em condições normais, já é um desafio, com estes problemas vividos durante o último ano, o papel de presidente e direção transforma-se em algo quase heróico, de modo a preservar um clube que tanto diz aos vila-florenses. “Gerir um clube como o em tempos de pandemia não é nada fácil, nem para o Vila Flor, nem para os outros clubes amadores. Por todos os motivos financeiros que já mencionei e também porque trabalhamos diariamente com muitas restrições, com muitas medidas impostas pela de DGS que temos de obrigatoriamente que cumprir, mas que não é fácil”.
Os intérpretes
Ainda durante o treino, Gilberto Vicente, cansado pela intensidade que usa para gerir o treino, revela-se igualmente intenso no que toca a defesa dos seus ideias. “No princípio era mais difícil, porque nós não entendíamos bem as regras que a DGS pretendia lançar cá para fora. Inicialmente consideraram o treino, que é desporto coletivo, como individual. Aos poucos e poucos foi-se modificando isso nos seniores e então entraram num contexto normal de jogo. Temos alguns cuidados, por exemplo a entrada dos balneários, de modo a não haver amontoamentos, agora dentro do campo deixamos de ter essa regra porque não vale a pena, o contacto entre os jogadores é mínimo”.
Claramente aborrecido, o treinador prossegue falando dos principais desafios que teve que enfrentar durante a pandemia. “A nível organizacional é onde os problemas começam a aparecer. Ainda esta semana tive um jogador que é titular e que não pôde vir porque a namorada tem o vírus, entretanto tive outro na semana passada que não veio porque foi fazer o teste, tive um adjunto que teve que ficar em casa, portanto a nível organizacional temos de nos ambientar”.
Longe do frio e no conforto do balneário a conversa vai evoluindo até à possibilidade de um novo confinamento. “ A equipa não compreende, não podemos compreender. Se abriu não pode fechar desta maneira. O principal foco de casos não é no desporto, há um, dois, três casos, quatro casos, nada que justifique uma nova paragem da competição”. Desiludido, Gilberto, prossegue: “acho que no futebol, principalmente no futebol regional, descurou-se um bocadinho na parte dos testes, não há testes, não há dinheiro para testes, portanto a DGS tem dois critérios, um critério para os profissionais e outro totalmente diferente para os amadores”.
Um sonho vindo do outro lado do Atlântico
Já no final do treino, claramente desgastado depois de mais uma hora e meia repleta de intensidade, Jonathan Gustavo, de 24 anos, natural de Piracicába, Brasil, revela-se sempre bem mesmo quando fala das dificuldades de estar longe da família ao mesmo tempo que tem de lidar com a pandemia. “Aqui é bastante diferente do Brasil, lá mesmo em alerta vermelho as pessoas não ligam, não obedecem, aqui é diferente, mais rígido. Estar longe de casa é muito complicado, só este frio, aqui está um negativo, lá estão 38 graus, depois viver nesta pandemia, às vezes tens treino, outras não e tens que treinar em casa, não existe estabilidade”.
A cara do jogador enche-se de orgulho quando questionado sobre o papel do clube na sua vida, neste momento tão complicado: “o clube ajuda-me bastante, desde que cheguei a Portugal, com alimentação, casa, trabalho, a minha transferência internacional, o meu salário, tudo. O Vila Flor nunca me falhou e eu fico muito feliz por isso, abriram-me as portas da Europa”.
Com uma timidez latente Jonathan, balançando na sua cadeira, fica com um pequeno brilho nos olhos quando fala em futebol e no sonho sempre presente: “a minha intenção sempre foi ser profissional, no Brasil como sempre joguei em bastantes clubes e alcancei algumas conquistas, cheguei com a intenção de chegar a primeira ou segunda liga”. Para isso, reforça a importância do apoio dos colegas de equipa, “a época que passei aqui sempre me apoiaram, sempre me deram motivação e me ajudaram a ter sucesso dentro do campo”.
O semblante alegre desaparece quando um dos temas mais sérios e importantes do futebol atual é mencionado. Olhando para as suas chuteiras, com uma expressão mais séria, Jonathan prossegue, “graças a Deus nunca recebi, mas tenho visto na televisão que vários colegas meu têm sofrido com isso e gostava de transmitir a minha solidariedade para eles”.