Transexualidade: “É quando uma pessoa tem um cérebro que não condiz com o corpo”

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Transexualidade: “É quando uma pessoa tem um cérebro que não condiz com o corpo”

[Texto de Inês Lopes Costa]

Nasceu como Ivone Cunha, mas hoje é Lourenço Ódin Cunha. Combateu uma luta física marcada por um processo de transexualidade com 20 cirurgias e uma batalha mental caracterizada por uma força de vontade e pelo apoio da família que nunca o deixou desistir. Escreveu o livro, “Dar Corpo à Alma” onde conta a sua história. Participou num reality show, em que a sua visibilidade o tornou referência para muitas pessoas que se reveem no seu testemunho.

Foto retirada das redes sociais @lourenco_odin com a devida autorização

Lourenço Cunha nunca foi de vestidos. As calças, os calções, os fatos de treino e as t-shirts eram a roupa em que se reconhecia. O seu interesse natural pelo grupo de rapazes para brincar, colocava de lado as conversas das suas amigas sobre a mais recente coleção da Barbie e as opiniões sobre as jóias que receberam de prenda, trocava-as pela adrenalina de pontapear uma bola e discutir estratégias de jogo. Já adulto, mostra uma aparência física que se afastara de qualquer semelhança a um corpo feminino. Cabelo rapado, roupa masculina, estratégias para disfarçar o corpo em que não se revia. 

Esta é parte da história de Lourenço Cunha, que nasce Ivone Cunha a 6 de março de 1982, mas que, desde cedo, percebeu que o cérebro não condizia com o sexo. 

Ainda em criança sentia que alguma coisa não estava bem quando olhava para as raparigas da escola e achava que eram todas suas namoradas. Só mais tarde, já adolescente, e quando se apaixona é que percebe que gosta de “mulheres heterossexuais, não as homossexuais”. Não se “vestia na pele de uma lésbica, era um homem de carne e osso e, por isso, abatia-se a desilusão por não ser o que deveria ser e a raiva com o mundo por ter sido um erro de conceção.” Segundo Lourenço, apesar de, nessa altura, o processo de transexualidade lhe ser desconhecido, a realidade é que mesmo sendo a Ivone, já era homem e todos ao seu redor o viam ou começavam a ver como tal.

Transexualidade é processo onde se atribui “a uma pessoa um corpo que lhe corresponde ao cérebro e no fim do processo és um homem ou uma mulher”.

Lourenço Ódin Cunha

As suas ex-namoradas viam um rapaz que ultrapassava a aparência física de uma maria-rapaz e conseguiram percebê-lo. “Sentiam-me como um homem”, afirma. Ele sabia que era homem porque, nas suas relações, “não havia um reverso.” “Uma lésbica, normalmente envolve-se com outra, eu raramente deixava que me tocassem, porque me fazia impressão, faltava ali alguma coisa e eu sabia isso desde o início.” 

As suas avós também olhavam para Ivone e viam um menino, tratavam-no como tal. “Lembro-me de a minha avó paterna já dizer: deixa o moço em paz. Ou a minha avó materna dizer-me muitas vezes: onde está a tua rapariga?”

Hoje, Lourenço percebe que é Lourenço desde sempre. Não era este o seu nome em criança, eram todos os nomes possíveis. Lembra-se que Rodrigo e Gustavo eram os nomes que mais usava nas brincadeiras.

Foi a necessidade de querer ser homem, não apenas de alma, como também de corpo que, ainda como Ivone, desafiou a primeira lei da vida: “nascer-se com um determinado género e comportar-se como tal”. Despiu-se de um corpo feminino e iniciou a sua metamorfose, trabalhou para que o seu exterior e o seu interior fossem um só. Há um adeus desde há muito ansiado que se concretiza por ele. Há uma mãe que diz:“a minha filha morreu” e viu o renascer de um filho. Há um pai que costuma dizer: “Deus escreve por linhas tortas, eu sempre quis dois rapazes e tenho dois rapazes”. Há o irmão que ganha um irmão. Há uma família que ganha um tio, um primo, um sobrinho. 

Renasceu um novo homem. Não mudou a essência, apenas mudou o seu exterior. “É como se mudássemos um rótulo, sabendo que o que está lá dentro é exatamente o mesmo. Não faz sentido nenhum numa lata de atum escrever feijão, correto? Pois então, na lata de Lourenço, riscou-se Ivone e corrigiu-se uma vida.”

Desde o momento em que se sentia um homem até o ser efetivamente, decorre um período de tempo longo, constrói-se uma história de vida que torna a vida de Lourenço uma história que merece ser contada. 

Transexualidade é um “processo com princípio meio e fim”

“Eu sempre, muito antes, pensava nos meus sonhos e um dia, mais tarde, eles realizam-se porque eu trabalho para tal. E eu sabia que esse também se ia realizar”

Lourenço Ódin Cunha

Aos 21 anos decide emigrar para o Luxemburgo, país onde viveu 10 anos, em busca de uma vida socialmente melhor, onde pudesse ter espaço para assumir quem era, distante dos olhares conservadores de Portugal. A Ivone vai sendo apagada e o seu estilo vai, lentamente, alterando-se. A primeira de todas as mudanças começaria pelo novo nome que a maioria dos amigos adotou”, Ruka. A par disto, “usava cabelo rapado, roupa masculina e o peito já sofria estratégias para passar despercebido”, através do uso de t-shirts mais largas e soutien desportivo.” Apesar de estar a construir a imagem com que se identifica, a realidade é que isso fez com que passasse por situações constrangedoras que fizeram com que mudasse de hábitos. Deixou de frequentar WC públicos, pois nunca sabia qual deles usar. “Aconteceu-me entrar, por exemplo, na casa de banho das mulheres e elas, porem-se para lá aos gritos a dizer que estava um homem, na casa de banho”. 

Deixou, também, de frequentar alguns locais públicos, como a praia, não só porque estando de t-shirt e com um bocado de vento já se evidenciava o peito, mas também porque “ir à praia de calções e estar com sutiã era uma coisa absurda”. Ai, sentia-se uma “aberração”, pois “não era o facto de mudar de sexo que era uma aberração”, era o sentir-se uma “aberração nessa situação”. Lourenço, para se manter ele próprio, passou a evitar sítios que lhe provocassem desconforto. 

Anos mais tarde, num café, ouve pela primeira vez o termo transexualidade. Até esse momento “nem fazia ideia de que era transexual, nem fazia a mínima ideia que era possível alguma vez na vida fazer uma operação para mudar de sexo”. Foi nesse momento que iniciou uma pesquisa exaustiva de “testemunhos, fotografias, médicos, hospitais” que o fizeram ir, presencialmente, à França e à Bélgica e a procurar respostas na internet em Inglaterra, Alemanha e Suíça. No entanto, a resposta às suas inquietações surge apenas em 2007, quando numa reportagem na televisão sobre a transexualidade conhece Décio Ferreira, médico, e uma pessoa que tinha feito a transformação completa de mulher para homem. Após a reportagem decide contactar o médico, que lhe responde, no final do ano, informando o protocolo que tem que seguir para iniciar o processo. 

Inicia com um médico de família a enviá-lo para um psiquiatra. De seguida, é acompanhado por uma psicóloga que não sabia bem como orientar, mas que não tinha dúvidas que Lourenço é um homem. Escreve, então, um documento que atesta que sofria de um Distúrbio de Identidade. Este relatório possibilitou começar a primeira fase do processo, ainda em Luxemburgo, injeções de hormonas à base de testosterona, que devido aos desconhecimento por parte do médico quase o matou. As injeções deveriam ser dadas de três em três meses, mas Lourenço tomava-as de “duas em duas semanas”. Isto fez com que os valores hormonais dele fossem aos 1400, colocando a sua vida em risco, visto que os valores deveriam estar entre os 400/700, valor normal num homem biológico. O que é certo é que, se por um lado iniciava uma das fases mais ambicionadas da sua vida, por outro iniciava a luta de mostrar à família que mudou e que aquele processo de transformação iria acontecer. “Há muita gente que não quer dar esse desgosto aos pais, quando a vida é nossa.  Nós temos que viver, mesmo que lhe demos um desgosto, nós temos que viver. Senão nós não vamos viver, vamos sobreviver.” Foi esta forma de pensar que o levou, em 2012, a regressar definitivamente a Portugal e a iniciar as operações. Este processo de mudança durou um ano. Um ano difícil, marcado por 20 cirurgias que permitiram trocar os órgãos que o identificavam biologicamente como mulher pelos de homem. As palavras dor, confiança, luta e apoio são o que caracteriza os momentos que se viveram neste período de tempo. Foram muitas idas a Lisboa para realizar as cirurgias, onde pôde contar, também, com o apoio do irmão e da cunhada para o levar e buscar. Há o apoio da mãe, que apesar de ter sido a que mais demorou a aceitar, é a que incentiva a que ele não desista na segunda cirurgia. Há o apoio do pai que sempre esteve ao lado dele. Há  toda uma família que se torna um pilar.

Durante este período existe o momento em que muda o seu nome de forma oficial. Lourenço Ódin Ferreira Cunha. É Lourenço porque não deixaram colocar o nome no registo que tanto queria, Ruka, pois “o nome não estava autorizado no país”. Ódin, nome escolhido pelo pai e que “representa o Deus da força e da caça”. Ferreira da Cunha são os apelidos de família.

Deixava, assim, para trás 30 anos de uma vida, de um nome, de situações embaraçosas de chamar pelo nome Ivone e ter um corpo masculino e ganhava a independência social.

“[Mudar de nome] não era uma prioridade pessoal, mas torna-se prioridade para ti, porque vais a um hospital, [chamam] Ivone e levanta-se um gajo de barba, por isso é que é importante mudar os papéis, precisamente por causa desse tipo de coisas fora do normal.”

Lourenço Ódin Cunha

A coragem, a opinião, o presente o futuro

“Antes de entrar eu disse aos meus pais:  quero poder ajudar pessoas, para poderem  fazer o tratamento e o processo todo muito mais cedo que eu”.

Lourenço Ódin Cunha

Ao entrar como concorrente na Casa dos Segredos em 2013, relatou em primeira pessoa que “nasceu com o género feminino e tornou-se num homem”, mostrando “publicamente, aos olhos de quem quisesse ver toda a sua determinação e força indestrutível”.

Apesar dos preconceitos atribuídos a quem participa nos reality shows, a verdade é que a participação do ex-concorrente deu-lhe visibilidade, tornando-o numa referência, não apenas para todos aqueles que querem passar pelo processo de transexualidade, como também para todos os que estavam a passar pelo que passou e desconheciam que há solução. 

Lourenço está habituado ao “preconceito inerente a tudo o difere do tradicional” e a Casa dos Segredos e a transexualidade não são exceções, mas este sempre desdramatizou essas situações. No que se refere ao preconceito da transexualidade, acredita que a melhor forma de o combater é “não falar sobre ele, acreditando que apenas existe se a cabeça dos demais o deixar existir”. Esse “lado autodestrutivo” nunca o dominou porque nunca ligou “a rótulos”, mas recorda-se de pessoas que acompanhou e as dificuldades que elas passaram, por exemplo, no local de trabalho. “Estão no emprego e estão em mudança e é muito difícil o patrão aceitar. É difícil para os colegas de trabalho aceitar. Não tinha que ser difícil porque a vida não é deles, a pessoa é que está a passar pela dificuldade no fundo. As pessoas recusam-se a chamar o nome que a pessoa quer, as pessoas chamam o nome que está no cartão de identidade.” Lourenço esclarece que nem tudo é mau, “há empregadores que percebem e aceitam”. “Se tu fazes o processo e depois arranjas um emprego, fazes uma vida nova, a pessoa nem sequer se vai aperceber.”

O ex-concorrente costuma dizer “há vários assuntos que não posso dar certezas, porque nunca senti na pele o chegar a um empregador e ele dizer que não tem emprego por isto ou por aquilo, mas como se chama ou como é que não se chama”. 

Ele ressalta que não vivenciou esta situação, porque trabalha no seio familiar. Depois, participar num programa 24h em direto “ajudou porque as pessoas estavam ali, acompanhavam todos os dias” e habituaram-se a chamá-lo por Lourenço.

Apesar da facilidade que o programa lhe deu nesse sentido, o ex-concorrente não deixa de reforçar a ideia de que este processo de adaptação é difícil para quem acompanha. Não é fácil perder um hábito de chamar um nome que se chamou toda a vida.

Pode parecer fácil, mas isto não elimina o preconceito que passa e por que passou, principalmente pela geração mais nova. “São a pior geração a esse nível, porque são a primeira geração a julgar. A primeira geração a ir para a internet espalhar boatos e fazer comentários negativos, ou se tiverem em grupo dizem: olha a mulher que agora é gajo”, lamenta. 

Relembra, entretanto, que quando saiu do programa tinha gente mais velha a ir ter com ele pois “perceberam que havia pessoas diferentes, porque perceberam o que era a transexualidade.” Sentia uma maior aceitação por parte destas pessoas. 

A história de Lourenço continua desde que saiu da Casa. Tem sido apoio de muitas pessoas nos seus processos de transexualidade. Tem trabalhado nos últimos oito anos para abrir uma instituição de apoio ao transexual na zona norte de Portugal continental, constituída por profissionais que possam dar o apoio e os esclarecimentos necessários. Tem dado voz à urgência de existir uma equipa de cirurgia plástica que faça as operações.  Tem sido uma das vozes nacionais na luta por um maior apoio à transexualidade.

 É através da sua voz que desconstrói a complexidade com que as pessoas caracterizam a transexualidade. “É a nossa essência que comanda o corpo e as opções ao seu alcance”, reflete, isto é,  “aos seis meses de gestação, quando estamos dentro da barriga, o nosso cérebro define uma coisa, define um género e o nosso corpo pode definir outro, as coisas aí tornam-se incompatíveis”. Quando isto acontece é importante ter presente que “o nosso cérebro não pode ser operável, temos que operar o corpo” e aí a pessoa é que tem que refletir acerca das suas opções: “operares, não operares, viveres assim o resto da vida, aceitares”. 

No entanto, acredita que “a condição imposta não é uma escolha, é um facto diagnosticado e com solução”. E a solução acaba por passar pela transexualidade, aquilo que Lourenço descreve como um processo onde se atribui “a uma pessoa um corpo que lhe corresponde ao cérebro e no fim do processo és um homem ou uma mulher”. Explica que “identidade de género não tem nada haver com identidade sexual”, ou seja, pode ocorrer uma transformação de homem para mulher, e a mulher gostar de mulheres. Uma coisa não está relacionada com a outra. Desmistifica a ideia de que uma pessoa que passou por um processo de transexualidade, não pode ter uma vida normal. Lourenço tem uma vida normal, trabalha, casou e hoje luta para conquistar um dos seus maiores sonhos, ser pai. 

Quando lemos ou ouvimos acerca da vida deste homem, pensamos: isto dá um livro. E deu, “Dar corpo à Alma”, onde podemos encontrar “os sentimentos, angústias, medos e incertezas que acometeram a personagem real desta história ao longo de todo o processo de transformação física e anímica: As cirurgias, as mudanças, os problemas, as lutas travadas passo a passo. Quem era Lourenço nesse passado e quem é o Lourenço no presente. O que mudou.”

Foto retirada das redes sociais @lourenco_odin com a devida autorização

Esta é uma ínfima parte da história de um homem, Lourenço, que trabalhou a vida toda para se encontrar. Enquanto decorria uma luta física e psicológica no processo transexual, outra estava a ser “travada por todos os que viam tal metamorfose como algo que contraria as leis naturais”. Esta é parte da história de Lourenço, um homem que afirma sem qualquer hesitação: “Hoje sou completo, hoje sou eu e quem me rodeia pode me ver como sou”.

Inês Lopes Costa

Inês Lopes Costa, 20 anos, nascida e criada numa freguesia de Vila Nova de Famalicão. Cresceu no meio do povo e o povo viu-a crescer, talvez este seja um do dos motivos que a faz gostar tanto de pessoas e falar com pessoas. Quando era pequena, ainda sem saber ler, gostava de olhar para os desenhos dos livros e inventar histórias. Hoje, adulta, espera poder ouvir histórias reais e espalhá-las pelo mundo. Sonha também dar voz a quem não a tem, tornando o invisível visível. Essas são talvez as razões que a levaram a escolher Ciências da Comunicação, estando neste momento no último ano da licenciatura. Ambiciosa, aventureira e curiosa são os adjetivos que a definem, pois ,diariamente, esforça-se para conquistar o que quer e partilhar o que gosta e aprendeu.