Um dia na vida de um sem-abrigo

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Um dia na vida de um sem-abrigo

Num momento em que a pandemia, causada pela Covid-19, afeta o mundo inteiro, o #infomedia acompanhou a rotina de um arrumador que há 11 anos se vê na condição de sem-abrigo. O testemunho é de alguém que acusa cansaço e relata as maiores dificuldades da vida. Dinheiro, fome, frio e solidão.


DRAGOS, o arrumador romeno. Foi há 11 anos, quando ainda vivia na Roménia, que um indivíduo lhe prometeu um emprego em Portugal e um bom ordenado. Na esperança de uma vida melhor, Dragos aceitou a proposta. O emprego de sonho era, afinal, arrumar carros na Rua da Meditação, no Porto. “Quando cheguei disse-me: daqui até ali é o teu local de trabalho. Senti-me enganado, mas rapidamente me adaptei.”

AS VIZINHAS são a primeira paragem do dia. Desde cedo, Dragos conquistou, com simplicidade e simpatia, os moradores e comerciantes da rua que é a sua casa há mais de uma década. Todas as manhãs, vai campainha a campainha. Percorre as casas da avenida para fazer os recados. Recolhe o lixo e carrega os sacos das compras. Para além destas funções, confessou que muitas das vezes vai apenas certificar-se “que as vizinhas estão bem”. Esta preocupação não parte só de Dragos. Enquanto o #infomedia lá esteve, foram vários os ‘vizinhos’ que o cumprimentaram e mostraram-se preocupados. “Então, Dragos, andas a comer bem?”

O CIGARRO é o único vício. Perante a rotina monótona, afirma “com a falta de pessoas, fumo o dobro”. Garante que é onde gasta parte do dinheiro que consegue, mas não é a prioridade. “Não deixo de comer para comprar tabaco.”

O CONFORTO que o romeno procura durante o dia. Ao fim de 11 anos a fazer a mesma coisa, o corpo e a cabeça começam a rejeitar a normalidade. Neste momento, é nas escadas de um prédio que se refugia do frio e da falta de movimento que a pandemia causou. A internet do restaurante “O Cantinho dos Sabores”, permite-lhe passar o tempo. No telemóvel, vê filmes, percorre as redes sociais e mantém-se a par das notícias. “Estou muito cansado. Por isso é que venho para aqui ver um filme e abstrair-me da ausência de pessoas na rua. Tem sido o meu refúgio. Fico aqui quentinho e ninguém me incomoda.” Habituado à solidão, confessa, “agora até prefiro estar sozinho e sossegado”.

A IRONIA presente na vida do romeno. No final da Rua da Meditação, a vista é para o cemitério de Agramonte. Com o encerramento dos estabelecimentos comerciais, as dificuldades de Dragos aumentaram e, por isso, o dinheiro era escasso. Começou a ser contado de tal maneira que já não fazia as refeições diárias que costumava até então. “Passei fome”, assume com os olhos a brilhar.   Durante o confinamento obrigatório, as visitas de outras pessoas ao cemitério eram a única fonte de rendimento. “Se não fosse o cemitério eu estava morto.”

AS ESMOLAS são o ordenado possível. A determinada altura, nem as passagens pelo cemitério eram suficientes. Apesar de ser arrumador, viu-se obrigado a arranjar soluções por não ter dinheiro para viver. Os pequenos trabalhos nas obras, o auxílio aos restaurantes da avenida e os recados dos moradores, permitiram-lhe remediar os prejuízos causados pela Covid-19.

O SUSTENTO ao final do dia. Com o dinheiro conseguido, Dragos dirige-se até ao supermercado mais próximo para comprar as refeições dos próximos dias. Preferencialmente, o Lidl de Agramonte, por ser, a seu ver, fascinante. “Este é o mercado mais bonito que vocês vão ver. Tem escadas rolantes e um jardim com plantas”. Num dia normal, compra pão, leite, fruta e bolachas.

O REGRESSO  a casa… de um amigo. Numa altura em que começa a acusar cansaço da vida que leva, Dragos procura um abrigo com melhores condições para sobreviver. Um amigo de longa data é, recentemente, a maior felicidade do romeno. Graças a essa ajuda, não dorme na rua, fugindo à normalidade. É no Carvalhido, no Porto, que se encontra o teto que o acolhe. Esta é uma ajuda que veio no momento certo. Há poucas semanas, “para fazer uns trocos” esteve numa obra a soldar cimento. Consequentemente, descobriu um problema na coluna que o condicionava nas deslocações a pé. Decidiu, então, pagar 1,20€ para deslocar-se de transporte público. Há 11 anos era impensável ter um telemóvel ou um andante. Espera-se, assim, o regresso à vida que poucas vezes conseguiu aproveitar.

[Fotorreportagem de Maria João Leal Pereira e Marta Bacelar]