Uma história sem fronteiras: do Egito a Portugal
- Catarina Ferreira
- 22/01/2021
- Atualidade Especial Internacional
A família de Rana e Nour chegou a Portugal, em 2019, através do programa do Alto Comissariado para as Migrações (ACM). Quase um ano e meio depois, contam ao #infomedia como foi o processo de adaptação de mãos dadas com a Cruz Vermelha de São João da Madeira.
Família Kahwaji
São 42 quilómetros do Porto até à casa da família Kahwaji. Rana, de 39 anos, disse “entrem, estávamos à vossa espera”. Já na sala, Obay e Aya, quase em coro, gritam “Qussai, desce!”. Depois deste apelo, Qussai desce as escadas, a um ritmo apressado, e junta-se aos irmãos. A situação atual do país não é benéfica para ninguém, no entanto, Aya esclarece que atualmente estão “muito mais confortáveis do que estávamos quando chegamos”. No entanto, “as dificuldades com a língua ainda se mantêm”.
Após dez minutos de diálogo, Rana, com um hijab branco, desloca-se ao andar superior da casa para preparar café. Enquanto isso, os gémeos Obay e Qussai expõem as dificuldades que sentem na escola. “No início os meus colegas não gostavam de mim, mas com o tempo tornaram-se meus amigos”, disse Qussai. Entristecido, Obay, comenta que “na escola, tanto a língua como as disciplinas, são bastantes diferentes dos países árabes”. Aya, com um hijab rosa, confidencia que a maior dificuldade que sentiu na universidade foi “adaptar-me à língua”. Após ser contextualizada sobre o assunto, Rana afirma que “o facto da minha filha ter deixado de ir à faculdade” a deixou muito triste “porque ela (Aya) tinha ambição de estudar”. Joana Correia, diretora da Cruz Vermelha, acredita que o facto de “usarem o hijab, mas se apresentam de uma forma muito ocidental” foi benéfico ao “nível de aceitação na comunidade porque as pessoas facilmente viram que não há diferenças tendo em conta a cultura e a religião”. Ressalva ainda a “estrutura muito interessante” desta família, o que permitiu “integrá-los na universidade, no entanto, não funcionou porque eles não estavam preparados, exclusivamente, por causa da língua”.
Da viagem à integração
A família de Rana e Nour tem 13 elementos em São João da Madeira e a diretora da estrutura local afirma que isso “ajudou muito, porque sentem o sentido de comunidade e de coesão maior”. No entanto, sustenta que o facto de a família ser muito extensa “faz com que a dificuldade da integração se amplie ao número de pessoas que vem”. A diretora mostra um sentimento de dever cumprido e reconhece que “a família de Rana e Nour é o exemplo de integração perfeita”. Um dos momentos mais felizes desde que chegaram ao nosso país foi “quando ouvi a voz da minha tia a dizer que vinha para Portugal”, conta Aya, com um sorriso no rosto. Os gémeos Obay e Qussai traduzem, mais uma vez, o que foi dito à mãe e os três concordaram e sorriram. Após este momento de ternura, Joana conta que a vinda dos tios e dos dois primos está prevista para o presente mês. Aya, com grande entusiasmo, traduz para árabe. Rana ao perceber que o irmão já chega este mês, agradece à diretora da estrutura local, com uma lágrima a cair pela cara. Entusiasmada com o futuro desta família, a regente da instituição afirma: “eles são 13 e agora ainda vem mais quatro. Portanto, vai ser lindo”. Apesar do ar cansado, Nour, 49 anos, cumprimenta todos os presentes na sala com um sorriso no rosto, à chegada do trabalho.
Foram precisas 5h30 de avião e 1h de carro para que a família de Nour e Rana chegasse, no dia 28 de novembro de 2019, a São João da Madeira. Ao recordar os tempos vividos no Egito, Rana admite a falta “das amigas”. Aya, nostálgica, relembra “um ano de universidade”, o que obrigou a “muito tempo de estudo”. Contudo, afirma que “todos os dias tinha momentos felizes”. Já Obay relembra que “aproveitava muito o tempo de escola com os amigos”. A maior dificuldade sentida por esta família foi “a diferença entre as pessoas e a língua”, sustenta Aya. Ao fazer uma comparação entre a rotina que tinham no Egito e a rotina em Portugal, Aya refere que “aqui é uma vida normal”, onde “estudo a língua porque preciso dela para me integrar da melhor forma na sociedade”. Contudo, “aqui todo o tempo é passado com a minha família, no Egito tinha mais tempo fora de casa”. E termina dizendo: “são rotinas opostas”. Qussai afirma: “em Portugal não consigo perceber nada, exceto se falarem em inglês”, e, apesar de já ter alguns amigos na escola, revela, entristecido, “fora de escola não tenho amigos”.
Cruz Vermelha com mais refugiados em Portugal
No dia 5 de janeiro pelas 15h30, num edifício de paredes brancas com letras vermelhas em destaque, Joana Correia, diretora do Centro Humanitário da Cruz Vermelha de São João da Madeira, fala sobre os refugiados acolhidos pela estrutura local. A responsável faz uma visita guiada pelo espaço até uma sala de paredes brancas, no primeiro piso. Nesta sala com cadeiras de estofo azul, com um ambiente aconchegante, Joana recorda o início do projeto “em 2015” onde acolheram “dois jovens eritreus”, provenientes da Eritreia, Chifre de África. Foi ainda nesse ano que acolheram “a primeira família oriunda da Síria, composta por cinco elementos”.
Apesar de receberem, maioritariamente, famílias sírias, acolheram também “uma família proveniente do Sudão do Sul, com sete elementos”. Joana, enquanto assinava um documento para a família de Aya, assegura que “foi um desafio muito interessante”. De forma a criar uma ligação com o que dizia, a diretora liga o projetor e a respetiva tela para mostrar diversas fotografias de refugiados e de atividades que são feitas na instituição, entre elas “aulas de português para os refugiados, reuniões da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) e da Juventude Cruz Vermelha (JCV)”.
Com sentimento de orgulho estampado no rosto, Joana garante: “somos a estrutura local da Cruz Vermelha Portuguesa com mais refugiados acolhidos em Portugal” – 44 acolhidos até ao momento. A diretora, enquanto desliga o projetor, sustenta que “é bom ter esse reconhecimento, mas no fundo não é isso que nos move”. Porém, ser a Cruz Vermelha com mais refugiados “também nos traz dificuldades. Muitas vezes, temos de gerir as expetativas dos refugiados que acolhemos em São João da Madeira, mas também de famílias de refugiados que foram integradas noutros distritos de Portugal”. Com alguma carga emocional, Joana conclui que “é muito bom sabermos que estamos a fazer um bom trabalho, mas isso acarreta responsabilidades e, às vezes, dissabores”.
Sendo uma estrutura local da Cruz Vermelha Portuguesa de referência, “o Alto Comissariado para as Migrações (ACM), propôs-nos o desafio de receber mulheres africanas com filhos porque acharam que tínhamos estrutura e capacidade para o aceitar”. O projeto consistia no “acolhimento de três mulheres com filhos provenientes da Costa do Marfim, Nigéria e Somália”, mas não se tinha acesso “às cidades nem aos nomes das mulheres, até elas chegarem, por uma questão de privacidade imposta pelo ACM”. Com um brilho nos olhos, Joana conta que aceitaram de imediato o projeto, visto que “a integração é o mais importante e porque esta é realmente a nossa missão, independentemente de todos os desafios que íamos ter de enfrentar”. No entanto, “as mulheres desertaram, desapareceram do mapa, muito devido ao seu nível de vulnerabilidade e o facto de se quererem conectar com familiares”.
Contexto Português
De 2015 até novembro de 2019, Portugal acolheu 2144 refugiados provenientes, maioritariamente da Síria, do Iraque e de Eritreia. Em 2019, ao abrigo do programa do Alto Comissariado para as Migrações (ACM), Portugal acolheu 21 sírios, que se encontravam no Egito, porque fugiram da guerra. A estrutura local de São João da Madeira, alojou 13 desses cidadãos. Ao abrigo do Programa Voluntário de Reinstalação do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e da Comissão Europeia, Portugal já recebeu 620 refugiados e o Centro Humanitário de São João da Madeira acolheu dez cidadãos.
De mãos dadas com o município José Fonseca, Chefe do Gabinete de Apoio à Presidência, sustenta que, em junho de 2018, o município “decidiu acolher 11 cidadãos, na sequência do protocolo entre o Município de São João da Madeira e o Conselho Português para os Refugiados (CPR)”. Estes cidadãos “integram dois agregados familiares de origem síria e residem em contexto de habitação social”, onde as crianças e jovens “estão integrados em contexto escolar com sucesso, quer nos resultados obtidos, quer ao nível dos relacionamentos com a comunidade escolar”. Permitindo “que seja feito um caminho para a igualdade e inclusão, trazendo benefícios para quem é acolhido e para toda a comunidade que acolhe”. Promete ainda no futuro “continuar a prestar apoio, de âmbito social, a estas famílias. Uma vez que o Centro Humanitário da Cruz Vermelha de S. João da Madeira tem acolhido refugiados, o Município tem prestado colaboração, aquando do momento em que o período de acolhimento termina, no que respeita à procura de uma solução em termos de habitação”. |