Uma vida sem rim ainda mais desafiante por conta da pandemia
- Ruben Marques
- 14/01/2022
- Atualidade Grande Reportagem Portugal Saúde
Quarentena, confinamento ou isolamento são conceitos que não podem constar no dicionário dos doentes renais crónicos, uma vez que a hemodiálise é um tratamento essencial à sobrevivência. Neste sentido, as unidades de tratamento tiveram de se adaptar ao contexto pandémico para garantir a segurança deste grupo de risco.
[Reportagem de Ruben Marques e Vitória Costa]
Passam cerca de 30 minutos das cinco da tarde e a azáfama já se instalara na clínica de hemodiálise Diaverum de Vila do Conde, situada, mais precisamente, no número 53 da Rua Dona Maria Pais Ribeiro.
Por esta altura, faz-se notar a presença de duas ambulâncias, que asseguram o transporte dos últimos doentes do turno da tarde – que funciona das 13h às 17h – acabados de sair do tratamento, bem como, em sentido contrário, dos utentes do turno da noite – em funcionamento entre as 18h e as 22h. Para além destes, chegam ainda algumas pessoas em transporte particular, quer seja no próprio veículo ou transportadas por familiares.
No estacionamento em frente à clínica encontram-se, à espera de serem chamados para o tratamento, Cármen Pinto Oliveira e o marido Manuel Flores Viana, dentro de um pequeno automóvel azul-escuro, resguardados do frio que se começa a acentuar com o cair da noite. Ambos tiveram o primeiro contacto com a hemodiálise há 35 anos, embora em circunstâncias diferentes e com percursos distintos.
Durante este período, Manuel, de 59 anos, foi submetido a dois transplantes renais, que lhe permitiram estar “15 anos fora da diálise”, pelo que, “a bem dizer, são só 20 anos de diálise”, explica. Tudo começou com uma gripe que agravou para uma pneumonia, que o levou para o Hospital da Póvoa de Varzim, de onde foi, posteriormente, transferido para o Hospital São João, no Porto, para que pudesse começar os tratamentos de hemodiálise, devido à falência dos rins.
Já Cármen, de 49 anos, faz hemodiálise de forma ininterrupta há 35, desde o dia em que, inesperadamente, começou a inchar. “Tinha 14 anos, comecei a inchar, do nada”, revela, “fui para o hospital e disseram-me que a única solução era a diálise ou então morria”.
Quando questionados sobre o impacto da pandemia no processo de hemodiálise, ambos referem que não sentiram alterações. “A mim não afetou nada, nunca apanhei nada. Na clínica manteve-se sempre tudo igual”, diz Manuel. Cármen reforça: “Para mim também não. Graças a Deus nunca apanhei vírus nenhum, é que nem gripe apanhei!”.
Ainda no exterior encontram-se mais pessoas, que aguardam o início da sessão de hemodiálise. Um dos utentes deste turno é Ventura Neves, de 59 anos, que está de pé, junto à porta. Conta-nos que depende do tratamento há dois anos, depois de, numa consulta médica de rotina, lhe ter sido detetada uma anomalia no funcionamento dos rins. “Mandaram-me ir fazer uns exames ao Hospital Pedro Hispano, eu fui e eles detetaram que os rins estavam a trabalhar só a 20%”, começa por expor. O facto de ter contraído uma pneumonia contribuiu para que o processo de deterioração das funções renais fosse acelerado, antecipando, deste modo, a necessidade de recorrer à hemodiálise.
Embora a pandemia de Covid-19 não tenha afetado o modo como se desloca para os tratamentos, uma vez que o faz em veículo próprio, Ventura nota diferenças em alguns aspetos que envolvem o tratamento: “não temos aquela liberdade que costumávamos ter, por exemplo, de ter um comando [de televisão] à nossa beira, de conversarmos uns com os outros. Agora estamos mais resguardados no nosso local e isso afeta-nos um bocado”.
Já no interior da clínica, mais concretamente na sala de espera, encontram-se alguns doentes, uns sentados nas cadeiras onde é permitido fazê-lo e outros de pé, cumprindo o solicitado distanciamento social, como medida de prevenção contra o SARS-CoV-2, especialmente importante por se tratarem de pessoas incluídas num grupo de risco.
De acordo com o Plano de Contingência para Infeção COVID-19 em Unidades de Diálise da Rede de Cuidados Hospitalares e Convencionados a Doentes Hemodialisados, emitido pela Direção-Geral da Saúde (DGS), as especificidades deste grupo são: Maior risco de letalidade Os doentes hemodialisados sob tratamento renal crónico são uma população de risco major de letalidade associada a infeção COVID-19: 40% com idade compreendida entre 65 a 80 anos e 24% acima dos 80 anos; multimorbilidade associada; baixa capacidade de cumprimento ativo de recomendações de prevenção. Maior risco de disseminação As características do tratamento, com transporte múltiplo em ambulância à Clínica, sessões trissemanais e permanência superior a quatro horas em salas com múltiplos doentes e clínicos acarreta elevado risco de contágio. Exigência de Continuidade de Cuidados Acresce a necessidade de garantir a qualidade, segurança e continuidade de cuidados entre Unidades Hospitalares e Convencionadas de tratamento, sendo que os programas Hospitalares de doentes crónicos cobrem menos de 10% da população tratada e a restante tratada em Unidades Convencionadas de Diálise. |
Nesta altura chega uma auxiliar de saúde que vem fazer a medição da temperatura corporal de cada utente. Em simultâneo, outros elementos da equipa de auxiliares estão a terminar a preparação das duas amplas salas de tratamento, separadas por uma divisória de vidro, que albergam, cada uma, 17 postos de diálise. O procedimento consiste na desinfeção, tanto interior como exterior, das máquinas de tratamento – que precisam de cerca de meia hora para estabilizar entre turnos. Após este período, a sala está pronta para receber os doentes, que não entram sem efetuar a higienização das mãos.
Nos locais destinados ao tratamento, os enfermeiros começam a ligar os utentes às respetivas máquinas, processo que demora aproximadamente dez minutos. Tudo isto ocorre sob a supervisão do médico de serviço no turno em questão.
Quem nos elucida mais em relação a toda a temática referente à hemodiálise é a médica nefrologista – especializada em saúde renal – Patrícia Martins, diretora clínica desta unidade.
“A hemodiálise é uma técnica que é utilizada para substituir a função renal. Quando os rins deixam de funcionar, o nosso organismo deixa de poder fazer uma série de funções que são essenciais à vida, por exemplo, excretar algumas substâncias que se acumulam no sangue, como a ureia e outras toxinas, alguns iões como o potássio e, às vezes, também água”. A médica nefrologista explica ainda que “a acumulação destas substâncias no corpo está associada a muitas complicações e pode, em casos extremos, levar à morte”.

De acordo com Patrícia Martins, durante o processo de diálise – termo que significa separação -, o sangue da pessoa que sofre de insuficiência renal é limpo e, posteriormente, devolvido ao organismo com recurso a uma máquina, composta por um filtro, que retira os componentes prejudiciais do sangue, bem como o excesso de água, substituindo, desta forma, a função natural dos rins.
Apesar de existirem várias circunstâncias em que as pessoas podem recorrer a este tratamento, como no caso de intoxicação, as mais frequentes são a doença renal crónica terminal e a lesão renal aguda. Na origem da doença renal crónica terminal podem estar problemas como a diabetes e a hipertensão arterial que, atualmente, segundo a diretora clínica, são os mais representativos entre os novos doentes, sobretudo nos países desenvolvidos.
Acrescenta que “as pessoas com doença renal crónica dita terminal, ou estádio cinco, precisam de diálise ou de outra técnica de substituição renal. Não quer dizer que a hemodiálise seja a única, também há a diálise peritoneal, que pode ser feita em casa e o transplante renal, que também é, nos doentes candidatos a transplante, uma boa forma de substituir a função renal”. Por sua vez, a insuficiência renal aguda “pode levar à necessidade de diálise mas de uma forma temporária”.
Hoje em dia a hemodiálise é uma técnica segura, bem tolerada, e que se pode fazer durante muitos anos, com menos complicações e com boa qualidade de vida no doente crónico
Patrícia Martins
Ao longo do período pandémico, independentemente de terem sido registados casos de Covid-19 entre doentes e funcionários, nenhum evoluiu para uma situação de surto. “Não tivemos nenhum surto com partida nesta unidade, embora a Covid tenha atingido a população em geral e nós não fomos exceção”. Um fator determinante para a ausência de surtos foi, e continua a ser, o seguimento do protocolo emitido pela DGS com normas especificamente direcionadas às unidades de hemodiálise e aos doentes renais que, segundo a diretora clínica, “veio mudar por completo a nossa forma de trabalhar e a maneira como se organizam os circuitos da diálise e os próprios transportes também”.
A utilização universal de máscara, por exemplo, embora já fosse recomendada, antes da pandemia, pelos profissionais de saúde do centro de tratamento vilacondense – sobretudo nas alturas das infeções respiratórias, mais recorrentes no inverno, como as gripes e as pneumonias – não era obrigatória, ao contrário do que acontece desde março de 2020.
Quanto à disposição do espaço, Patrícia Martins revela que não houve muitas alterações, dado que, “a nossa unidade é uma unidade nova, com muito espaço e, como tal, conseguimos garantir o cumprimento de todas as normas em termos de distância entre doentes”. Assim sendo, aquilo que optaram por fazer foi a adaptação da sala de espera, onde há agora lugares que têm autocolantes a dizer ‘não sentar’, para as pessoas manterem o distanciamento necessário, uma vez que “as pessoas têm tendência a estar juntas e a conversar umas à beira das outras e tudo isso é de evitar nesta fase”. Para além disso, procederam também à criação de circuitos, de forma a evitar grandes aglomerados de pessoas no mesmo espaço. “Portanto alterou por completo o dia a dia da nossa unidade e exigiu uma adaptação grande”, conclui.
A hemodiálise peritoneal
Outra das formas de tratamento das doenças renais é a diálise peritoneal. Abílio Oliveira, de 57 anos, é o exemplo de alguém que já passou esta experiência. Conta que teve conhecimento “de uma poliquistose renal e hepática, aos 35 anos, por herança genética”, tendo sido diagnosticado com doença renal crónica 12 anos depois.
A partir de 2015 começou a ver a função renal agravar-se gradualmente. Posto isto, consciente de que reunia todas as condições, “nomeadamente no que diz respeito a condições higieno-sanitárias, optei pela Diálise Peritoneal”. O processo teve início com “uma pequena cirurgia” para a colocação de um cateter peritoneal, no abdómen, em 2017 – um passo fulcral para inicializar, em 2019, a técnica de Diálise Peritoneal Automática (DPA).
De acordo com o entrevistado, embora existam diversos tipos de programa de diálise peritoneal, os mais comuns são a Diálise Peritoneal Manual, também conhecida como Diálise Peritoneal Contínua Ambulatória (DPCA) e Diálise Peritoneal Automática (DPA). No entanto, ambas as modalidades de diálise peritoneal são feitas em casa, ao contrário do que habitualmente acontece com a hemodiálise. A DPCA, que não necessita do apoio de qualquer máquina, envolve a realização de várias trocas do líquido dialisante durante o dia, geralmente três a quatro, sendo que cada uma demora cerca de 30 minutos. A primeira troca do dia é geralmente feita após o acordar e a última antes de deitar. A DPA funciona através de uma máquina, designada por cicladora, que realiza uma série de trocas, de forma autónoma e praticamente silenciosa. Pode ser realizada durante a noite, com cateter a ser conectado, à máquina, ao deitar e desconectado ao levantar. |
A diálise peritoneal é realizada através de um pequeno tubo composto por um material sintético, chamado cateter peritoneal, que possui duas extremidades, uma fica no interior do abdómen e a outra no exterior. Em comparação com a hemodiálise não há necessidade de ser picado com agulhas
Abílio Oliveira
Abílio justifica a preferência por este tipo de diálise “pela perceção de um processo mais fisiológico. Neste procedimento o peritoneu – uma membrana que reveste os órgãos abdominais – funciona como um filtro. Deste modo, através do peritoneu, o líquido e os solutos em excesso no organismo passam da corrente sanguínea para a solução dialisante, que permanece no organismo durante várias horas”. Findo este período, “o líquido é drenado através de um cateter para um saco, sendo, posteriormente, realizada a infusão de novo líquido na cavidade abdominal”. Segundo o próprio, isto é “uma vantagem importante, em comparação com a hemodiálise”, visto que permite “preservar durante mais tempo a função restante dos rins”.
Explica, ainda, que o facto de ser realizada na própria casa, foi outro fator que contribuiu para a decisão, uma vez que, assim, podia optar por se submeter ao tratamento durante a noite e, desta forma, ficar disponível para as atividades diurnas. No entanto, reconhece que esta prática “requer um maior envolvimento dos familiares mais próximos, quer pela adaptação do espaço, quer pela logística que é inerente”.
Foi através do resultado das análises – parte importante da rotina dos doentes renais – que, em 2020, Abílio ficou a saber que a DPA já não estava a ser suficientemente eficaz. “Em função deste resultado foi-me indicado a passagem para a hemodiálise, que iniciei em agosto de 2020”, esclarece.
O transplante renal
Para além da hemodiálise e da diálise peritoneal, tal como já nos havia explicado a especialista Patrícia Martins, o transplante renal também é umas das opções a equacionar pelos doentes renais crónicos que cumpram os requisitos necessários para entrar para a lista de transplantes.
O que é um transplante renal? O transplante é uma opção de tratamento para a insuficiência renal, mas não é uma cura. À partida, o transplante renal proporciona uma vida potencialmente mais longa e mais saudável, livre da diálise e das restrições alimentares, mas o seu novo rim traz consigo um conjunto de cuidados a ter em conta durante toda a vida. Quem pode fazer um transplante? Infelizmente, nem todas as pessoas podem fazer um transplante renal. Se tiver outros problemas de saúde importantes, talvez a diálise seja uma melhor opção de tratamento. Os seguintes fatores poderão afetar a possibilidade de vir a ser transplantado. – aceitação da ideia de um transplante, – bom estado de saúde geral, para além da doença renal, – motivação para prosseguir com os exames necessários e a cirurgia, – motivação para aceitar um regime de medicação para o resto da vida. |
Os transplantes foram, dentro do setor da saúde, uma das vertentes em que mais se sentiu o impacto da Covid-19 em Portugal, o que, em 2020, de acordo com o Instituto Português do Sangue e Transplantação (IPST), se traduziu no valor mais baixo de transplantes renais, quando comparado com os nove anos anteriores – uma tendência apenas contrariada pelo Centro Hospitalar de Lisboa Central.



Já nos primeiros sete meses de 2021 verificou-se um aumento do número de pessoas transplantadas em comparação ao período homólogo do ano anterior, com exceção de janeiro e fevereiro, uma vez que os primeiros casos de Covid-19 em território nacional só foram registados em março.
Total de transplantes renais, por mês, dos anos de 2020 e 2021 | Fonte: IPST
Contactos úteis para mais esclarecimentos sobre doenças renais:
Sociedade Portuguesa de Nefrologia | www.spnefro.pt | 217 970 187 | geral@spnefro.pt |
Associação dos Doentes Renais de Portugal | www.adrp.pt | 225 022 851 | adrnpsede@gmail.com |
Associação Portuguesa de Insuficientes Renais | www.apir.org.pt | 218 371 654 | apir@apir.org.pt |
Chamo-me Ruben Marques, tenho 20 anos e sou de Gondomar. Decidi seguir o curso de Ciências da Comunicação, uma vez que, foi a área que sempre me fascinou e é o que me vejo a fazer no futuro.