Videojogo: um vício que leva à competitividade
As mãos geladas no teclado e no rato, os olhos vidrados no ecrã. Acabado de acordar, Leandro Coelho inicia mais um dia dentro do seu próprio mundo, o videojogo. O CS-GO [Counter-Strike Global Offensive] tornou-se no maior vício do jovem de 21 anos, desde 2013.
São nove da manhã, de um sábado com muito frio dentro de casa. Sentado à secretária, no pequeno quarto de arrumos onde costuma jogar, Leandro prepara-se para ligar o aquecedor para começar a “matar a fome” do jogo: “aproveito sempre que posso para acordar cedo para jogar, para não perder o meu ritmo competitivo”.
O CS-GO é um jogo de tiros e estratégia, onde o espírito coletivo é fundamental. São cinco contra cinco [Terroristas vs. Contraterroristas] dentro um de muitos mapas virtuais que o jogo oferece. Conhecido no mundo do CS-GO por Goodi, Leandro vai jogar no Mirage [Mapa do Jogo], a terrorista, com o objetivo de ganhar 16 rondas em 30 possíveis.
Os Terroristas têm de plantar uma bomba, com o objetivo de a deixar explodir depois de 40 segundos e aos Contraterroristas cabe impedir essa missão. Ao fim de 15 rondas as equipas trocam de lados. Os jogadores Terroristas passam a ser Contraterroristas e vice-versa. |
Boa comunicação para uma melhor competitividade
Enquanto joga, ouvir todos os passos que os adversários dão é essencial, assim como a comunicação com a equipa: “é impossível ganhar um jogo se eu não conseguir comunicar com os meus colegas de equipa”, admite. Para isso, é necessário usar uns headsets [combinação de auscultadores e microfone]. Leandro aceita o desafio de fazer uma ronda sem os headsets, apenas utilizando o microfone e o som projetado pelo computador portátil. Devido à experiência do jogador, com 5 mil horas (o que corresponde aproximadamente a 208 dias) de jogo no total, o desafio foi cumprido com sucesso.
Para além de um vício, o jogo pode ser uma forma de aprendizagem. Este jogador refere que desde 2013, através do jogo, pôde melhorar muito o seu nível de inglês, uma vez que o jogo é online, ou seja, abrange muitas nacionalidades. Ao comunicar teve de se adaptar a um idioma mais universal. Posto isto, Leandro confessa: “nestes anos todos, aprendi muito mais inglês no jogo do que na escola”.
A 15 quilómetros de distância deste jovem natural de Marco de Canaveses vive Renato Valdoleiros, em Baião, no distrito do Porto. Este rapaz partilha da mesma paixão que Leandro pelos videojogos. O Counter-Strike também é o jogo no qual “perde mais tempo”.
Renato, contrariamente a Leandro, joga no quarto com as persianas fechadas, num computador fixo com as luzes do teclado a brilhar durante o jogo. É a jogar com amigos que está a passar a tarde, de forma virtual. Enquanto fala com os colegas, é notória a escassez na língua inglesa. Apesar disto, admite que “saber inglês é fundamental para quem vai jogar sem amigos [no CS-GO existe a possibilidade de ir com amigos, para o modo de jogo, ou ir sozinho e apanhar jogadores aleatórios na mesma equipa]”.
O jovem Baionense constata que arranjou só agora uma equipa fixa, o que lhe “permite desfrutar do jogo a 100 por cento” isto porque nunca dominou o inglês na perfeição, para dialogar com companheiros estrangeiros.
Também reparei que ao jogar com eles aprendo um pouco de inglês e as minhas mecânicas de jogo melhoram.
Tanto Renato como Leandro consideram que os cheaters [jogadores que fazem batota durante o jogo] desmotivam muito quem quer ser bom jogador. Renato, no segundo jogo da tarde, até apanhou um adversário que conseguia ver os jogadores pelas paredes do mapa [o jogo não permite essa funcionalidade].
A competitividade é algo que faz parte de um bom jogador, porém para ter sucesso é necessário “consumir” muitas horas de jogo e ter um nível de concentração altíssimo. São estes os fatores que acabam por diferir estes dois rapazes.
É possível ver no rosto de Leandro o sentimento de orgulho ao dizer que já foi Global Elite [o patamar mais alto do jogo] e Renato afirma, enquanto fala com os amigos pelo Discord [plataforma digital de comunicação, usada frequentemente nos videojogos] que não se importa muito com os ranks [patamar] que se pode ter, mas “a competição é uma coisa boa porque melhora as nossas habilidades no jogo e isso é viciante”.
Apesar das declarações proferidas por Renato, em relação a não querer saber muito sobre a competitividade, apresenta sinais de nervosismo enquanto joga, como as pernas a tremer ou a forma como fala nas rondas decisivas. Os gritos instantâneos e naturais são outro sinal, pelo qual o jovem, inconscientemente, mostra a forma como o jogo o vicia competitivamente.
Neste momento, Renato joga num competitivo [modo de jogo mais apreciado no CS]. Está 15-13 e falta uma ronda para atingir a vitória. Neste que é o comp [competitivo] mais renhido que teve hoje, estão três elementos vivos da equipa adversária e Renato é o único vivo da sua. A 30 segundos de acabar a ronda, o mesmo planta a bomba num local específico ganhando mais 40 segundos de tempo extra. De forma repentina e hábil, consegue matar os adversários e ganhar o jogo.
Boas condições, custos elevados
A felicidade está presente no grupo de amigos, pois além da vitória, um colega subiu de rank. O grupo comenta o comp e aponta que ter um computador bom faz diferença no desempenho. Renato não nega: “cheguei mesmo a trabalhar na loja dos meus pais para conseguir dinheiro para comprar um equipamento melhor”, já que, em 2016, não tinha condições nenhumas para jogar. Atualmente, tem um computador avaliado em cerca de 1000 euros.
Agora é hora de comer um pacote de bolachas de água e sal, esperado no fim do jogo, e ir ao frigorífico “roubar” o último iogurte de morango da irmã. Ainda a pensar na conversa que teve sobre a importância da qualidade dos computadores, Renato conta que não se importa de trabalhar em tempo de aulas “se depois conseguir jogar em condições”.
Trabalhar é sempre uma mais valia para investir, futuramente, no jogo. No entanto, existem outras formas de conseguir juntar dinheiro, como fazer apostas online em sites cujo tema principal é o Counter-Strike.
Depois de um longo caminho e com muito gelo na estrada, volta-se a Marco de Canaveses, para conhecer Guilherme Oliveira. Um rapaz com 21 anos, que “adora ver equipas profissionais de CS” e se puder apostar dinheiro nesses jogos, “melhor ainda”.
Era no telemóvel que Guilherme estava a passar o dia, a ver uma stream na Twitch [plataforma de transmissão online] de um jogador profissional, enquanto não jogava a equipa de CS que queria assistir, os Astralis.
Levanta-se do sofá e vai até ao quarto, para explicar como faz com as apostas dos jogos. Um site chamado VulkanBet, com um logótipo vermelho e uma cor de fundo [do site] azulada, apresentando uma tabela com os jogos do dia e com as odes de cada equipa.
O jovem diz que foi com este site que conseguiu “montar” o setup [todo o equipamento que usa para jogar] dele. Esta secretária espaçosa, um monitor que “não faz cansar os olhos”, um rato branco que brilha juntamente com o teclado no decorrer das partidas competitivas, mais o chão radiado com uma cor vermelha – é tudo fruto no qual Guilherme se orgulha e um dos fatores principais por passar noitadas a jogar.
Rendimento escolar vs. Rendimento no jogo
As noites passadas a jogar podem criar problemas na escola, pois “ficar acordado até tarde por causa do CS já me prejudicou o rendimento escolar”. O jovem fala, de forma silenciosa, para que os pais não o ouçam.
Ainda que Guilherme tenha menos duas mil horas [125 dias] de jogo que Leandro, desabafa: “não consigo deixar de jogar por causa dos estudos, tenha pena mas afeta-me o psicológico”. Já Leandro realça que os estudos são prioridade, mas não deixa de jogar porque ter de estudar, apesar de já ter discutido algumas vezes com os pais, por causa da Universidade e do jogo.
Quando estou apertado em relação aos testes tiro algumas tardes para estudar, mas acordo às 6h30 para fazer um joguinho.
Em relação ao Ensino Superior, estes dois jovens fazem escolhas diferentes. Leandro estuda em Vila Real, na UTAD [Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro] e leva o portátil consigo para poder jogar diariamente, sem a presença dos pais. No entanto, Guilherme, rindo, conta que optou por ir para a ESTEG [Escola Superior de Tecnologia e Gestão], um local perto de onde mora para “não ter trabalhos de carregar o computador fixo ou não o puder levar para jogar”.
Do computador à Playstation
Na mesma rua de Leandro, o seu amigo de infância, Luís Moreira, também dedica o seu tempo aos videojogos. Apesar de ter a mesma paixão por este mundo, o jovem prefere jogar na Playstation. O FIFA 21 [jogo de futebol] é o novo refúgio deste rapaz, quando não vai trabalhar para a fábrica.
O FIFA é lançado anualmente, uma vez que se joga com equipas de futebol reais. Além disso, dá para jogar online e ter a oportunidade de construir um equipa com jogadores de diversos clubes. |
Ao fim da tarde de um domingo, Luís está a jogar à vez com um amigo no seu quarto. Sentados na ponta cama, em frente à televisão, comentam o decorrer da partida com alguns nervos à mistura.
O nervosismo é normalmente o que o domina, como se pode ver pelo comando partido que já “beijou” muitas vezes a parede (na qual já se nota o desgaste das reações violentas do jovem).
O FIFA obriga-me a fumar muito para me acalmar um bocado. – Luís Moreira
Um pouco envergonhado, Luís revela que “uma vez apareceu um vizinho à porta a pedir para falar mais baixo” e “o mais engraçado é que estava a falar sozinho”, isto porque o jogo o deixa fora do controlo.
Descontrolado mas nunca desanimado, confessa: “o FIFA vicia-me muito e ganhar aos outros jogadores motiva-me imenso”. Luís acrescenta ainda que só em modo online é que há “piada”, porque existe a oportunidade de ter uma equipa com jogadores aleatórios e ganhar packs [pacotes com uma quantidade de jogadores de clubes que são ocasionalmente distribuídos a quem os abre] para melhorar a equipa que criou.
É nos fins de semana que este rapaz aproveita para “dar tudo no FIFA” porque quer compensar o tempo que “perde a trabalhar”.
Tenho estado a trabalhar numa fábrica perto de casa, para comprar a Playstation 5, que está a custar 400 euros.
O jovem e o amigo vão, agora, fazer uma pausa para abrir os packs que conseguiram ganhar através dos jogos que fizeram [o FIFA atribui packs no fim de alguns jogos seguidos]. É com calma que eles comentam a sorte que poderão ter ao abrir os pacotes. Luís confessa: “Se sair o Neymar fico feliz um mês inteiro”.
Não saíram jogadores “maus” mas “poderiam ter sido melhores”, segundo eles. Depois dos packs abertos, o jovem regressa ao jogo, até poder abrir de novo, sempre com o mesmo objetivo: “dar uma goleada nos adversários todos”.
Está perto da hora de jantar, Leandro para o jogo, a pedido expresso dos pais. Com os olhos cansados e duas latas de redbull [bebida energética] vazias na secretária. Antes de sair do quarto tem o cuidado de desligar o aquecedor, calça os chinelos, dirige-se à cozinha e senta-se à mesa, enquanto mexe o pulso dormente. Hoje não vai jogar mais, pelo menos é o que os pais pensam.