Vitor Paixão: “Um país sem educação e sem cultura é um país moribundo, triste e perdido”

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Vitor Paixão: “Um país sem educação e sem cultura é um país moribundo, triste e perdido”

Vitor Paixão, ex-Presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria da Feira, em Beja, vê o futuro da cultura e da música da sua cidade com muita preocupação e receio. “Não podemos enfiar a cabeça na areia e procurar ter apenas resultados internos, limitados a esta região esquecida”, refletiu em entrevista, “temos de promover a cidade e julgo que um grande festival seria a melhor forma de o fazer”.

[Texto de Diana Loureiro e Diogo de Sousa]

Coorganizador do Santa Maria Summer Fest (SMSF), festival de música extrema que se realizou durante oito anos em Beja, e Diretor do Serviço de Recursos Humanos da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, Vítor Paixão é também formador nas áreas de Direito Administrativo, Direito do Trabalho, Recursos Humanos, Sistema Educativo em Portugal, Formação de Formadores, Regulamento Geral de Proteção de Dados, entre outras. É, também, detentor do CADAP (Curso de Alta Direção em Administração Pública) e Especialista em Gestão de Unidades de Saúde bem como em Igualdade de Género. Natural de Beja, identifica-se como uma pessoa “voltada para o povo”, ideia que se reflete igualmente no seu percurso político e nos vários esforços na promoção da cultura na sua cidade natal. Ideologicamente de esquerda, não tem pudor em reconhecer qualidades na verdadeira social-democracia, mas revela-se um “acérrimo defensor” do estado social. É cada vez mais adepto do anarquismo libertário e dispensa, desde há alguns anos, a política partidária.

A Associação Juvenil CulturMais, da qual faz parte, existe há mais de sete anos e apareceu para dar continuidade ao Santa Maria Summer Fest, mas depressa começou a apostar em eventos esporádicos, desde as artes circenses, passando pela comédia stand up, teatro, música, exposições de pintura, fotografia e outras formas de expressão artística. Segundo o cofundador da associação, a posição da CulturMais sempre foi a de promover uma alternativa cultural na cidade e até mesmo no distrito. Reconhecendo que algumas vezes tenha promovido o lúdico em detrimento do cultural, Vitor Paixão enfatiza que a principal preocupação da Associação sempre foi a alternativa, o ecletismo e a diversidade cultural, inclusivamente dentro do evento principal (o SMSF), em que a partir da quinta edição, sem deixar de assumir a sua vertente extrema, apostou gradualmente noutros géneros musicais, como o cante alentejano, o rap, o neo-folk, ou a música eletrónica. “Trabalhamos com mais de 200 bandas e artistas musicais de renome nacional e internacional, de diversos géneros”, relembra, “Raminhos, Herman José e muitas outras figuras da nossa cultura e/ou entretenimento, sempre com a intenção de proporcionar algo de diferente, que os outros não conseguiam proporcionar, não porque não o pudessem fazer, mas sim por falta de visão ou receio em arriscar”. Atualmente, Vitor Paixão rema sozinho contra a maré, no entanto, vê esperança no MUPA – Música na Planície, um festival que vai na segunda edição, inicialmente fruto da CulturMais, mas que terá continuidade através de uma outra associação criada pelo seu filho, Vitor Domingos.

Oito anos de “trabalho, diversão, companheirismo e loucura”

O festival Santa Maria Summer Fest, em Beja, terminou com a edição do ano de 2017, acabando por não se realizar no ano seguinte. “Foram oito anos de muito trabalho, mas também muita diversão, companheirismo e loucura a rodos”, recorda o coorganizador. O SMSF terminou com a mudança de executivo, para o Partido Socialista, e a Associação Juvenil CulturMais não concordou com o valor de apoio que iria diminuir cerca de 40% relativamente ao apoio de 2017. “Nós sempre fizemos parte do risco”, declara, “como tal o nosso objetivo passava sempre por conseguir 50% do festival da área institucional, Município, Juntas de Freguesia, IPDJ e Direção Regional de Cultura do Alentejo, pois o restante teríamos de ser nós a arranjar, fosse com o apoio de privados, com a angariação de dinheiro mediante a realização de outros eventos, pela receita dos bares e da bilheteira do festival ou até mesmo – e tantas vezes que o fiz – mediante o adiantamento de verbas da família”.

Enquanto dirigente associativo, sempre se assumiu contra o facto de as associações viverem exclusivamente por conta de dinheiros públicos. “Isso não significa que reclame mais e melhor apoio”, defende. Porém, por ter sido presidente de uma junta de freguesia, afirma que via com que facilitismo todos os dias lhe chegavam pedidos de apoio para custearem despesas com eventos, de maneira a que não houvesse qualquer tipo de iniciativa ou risco financeiro por parte dessas associações, não concordando com isso e defendendo sempre o princípio da proporcionalidade nos apoios. “Se uma entidade desenvolve atividades que implicam custos anuais na ordem dos 120.000 euros, que sentido faz receberem o mesmo valor de outras que praticamente nada fazem?”, questiona Vitor Paixão, “em Beja faz-se assim, são 900 euros de apoio anual por parte do Município para atividade regular, independentemente da tua atividade anual implicar um custo de 100 ou 10 mil euros e com isso não concordo”.

No entanto, um festival da dimensão do Santa Maria Summer Fest trouxe outro tipo de dinâmica à cidade de Beja. Segundo o dirigente da CulturMais, o corrupio existente na cidade era visível e palpável, com resultados bastante positivos para a restauração e bares, hotelaria e até mesmo comércio a retalho. Inicialmente visto com desconfiança pelos moradores, o festival foi, gradualmente, gerando consensos e permitiu desmistificar certos preconceitos relativamente a pessoas que se vestiam de forma diferente, que gostavam de música diferente, mas que se revelaram respeitadores. “Amo a minha cidade e dava-me um gozo enorme ver os restaurantes e cafés, bem como os supermercados, com centenas de pessoas que vinham ao festival”, recorda. O  evento começou a crescer e a sedimentar-se, a fidelização de público alcançou-se e não menos importante, com a internacionalização do festival, a cidade de Beja foi falada nos quatro cantos do mundo, através da imprensa da especialidade. Havia, inclusivamente, esse reconhecimento por parte do anterior executivo, manifestado através do apoio, não só financeiro, mas também logístico. “Diria que nem sempre foi o ideal, mas foi crescendo, sinónimo de que estavam também eles, os políticos, a ganhar consciência do crescimento daquele bebé, ao ponto de nas duas últimas edições ter vereadores e presidentes de junta a marcarem presença, o que me deu um enorme gozo e satisfação”.

“Lamentavelmente a minha cidade encontra-se a definhar em quase todas as áreas e a cultura não foge a essa triste realidade”

Vitor Paixão vê o Aeroporto de Beja, a cultura e a arte como polos de ligação. A arte e os festivais podem ser geradores de turismo e emprego, no entanto, o retorno financeiro, na perspetiva do desenvolvimento socioeconómico e cultural é um longo percurso que apenas terá resultados ao fim de muitos anos. Segundo o antigo Presidente da Junta de Freguesia, esse desenvolvimento deverá ser sempre aliado a uma política cultural assente numa estratégia em que todas a formas de arte e todas as manifestações culturais deverão fazer parte de uma programação que permita alcançar diversos públicos, quer locais, quer nacionais e até mesmo internacionais, situação que já estavam a alcançar com público oriundo do Canadá, Eslovénia e Suécia, aliado a outros países da União Europeia. “Naturalmente que, com o funcionamento do aeroporto, as coisas ficariam bastante mais facilitadas pois se assim é na vertente económica… Contudo não  nos podemos esquecer que por si só o aeroporto não seria suficiente”, explica, “para trazer público internacional ou até mesmo nacional tens de ter iniciativas que apelem ao sentido, que apelem aos melómanos, no campo da música por exemplo, aos apreciadores de pintura, de teatro, entre outras manifestações culturais, ou seja, tens de ter a tal estratégia, assente numa visão eclética, diferenciadora, mas de qualidade, conceito tão relativo, e agregadora de diversos públicos, caso contrário os aviões não irão servir de nada.”

No que toca à relação da cidade de Beja com a música e com a cultura, Vitor Paixão considera que “o município e as juntas de freguesia dão sempre mais do mesmo”, não criticando a qualidade de muitas iniciativas, como por exemplo os eventos do Teatro Municipal Pax Julia. Segundo o dirigente da CulturMais, exclui-se, de uma forma praticamente liminar, tudo o que seja “fora da caixa” e tudo o que “saia dos padrões a que os meios de comunicação social “nos” habituam”. Não se importa com os “bailaricos populares”, nem se chateia com os 20 concertos de música pop por ano, os dez espetáculos de comédia stand up “da moda” não o incomodam, nem as seis ou sete peças de teatro realizadas e representadas nos últimos anos, mas interroga-se sobre onde está o resto: a arte contemporânea, a Casa da Cultura, a música rock, o punk, e o metal. Na vertente privada, também considera a oferta pobre, “em Beja atualmente existe apenas um local onde acontece de quando em vez algo interessante e diferente, onde consegues ter verdadeiramente cultura, onde tanto podes estar a jogar damas ou xadrez e teres um DJ set que até aprecias e por vezes um ou outro concerto, uma ou outra iniciativa de qualidade”, admite, “tirando esse local, nada mais, zero!”

Em suma, observa que é a vontade férrea de algumas associações, não mais do que duas ou três, que vão desenvolvendo um conjunto de iniciativas diferentes. Acrescenta também que as autarquias deveriam ver essas iniciativas como uma extensão da sua própria atividade, como uma mais valia para o enriquecimento e para a diversidade cultural da cidade. No entanto, estas iniciativas são consideradas concorrentes pois o apoio tem sido sofrido, e com pouca ou nenhuma divulgação, quando comparado com as iniciativas promovidas pelas próprias autarquias. “Lamentavelmente a minha cidade encontra-se a definhar em quase todas as áreas e a cultura não foge a essa triste realidade”, constata o ex-Presidente da Junta de Freguesia.

À procura de espaço à esquerda

Em 1994, após oito anos na Juventude Comunista Portuguesa (JCP), sentindo simpatia pelas políticas do então bloco de leste de Gorbachev, Vítor Paixão, com apenas 24 anos, inspirado pelos ventos socialistas de António Guterres e mais tarde por Jorge Sampaio, tornou-se militante do Partido Socialista. No entanto, a limitada liberdade de expressão interna, o pouco posicionamento de esquerda do próprio partido e o segundo mandato de José Sócrates, foram alguns dos exemplos que o levaram a demitir-se da presidência da secção de Beja do partido e a desassociar-se em 2014. Antes disso, o agora adepto do anarquismo libertário foi Presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria da Feira, em Beja, pelo Partido Socialista entre 2009 e 2013.

Influenciado pelo ambiente familiar imbuído de raízes comunistas e, mais tarde, pela vida académica, sentiu o apelo pela política desde cedo. Contudo, afirma que sempre lhe causou algum incómodo a disciplina partidária e ainda mais a disciplina de voto. Os “instrumentos limitadores e cerceadores e até castradores da liberdade de pensamento individual”, são a causa do seu desinteresse por qualquer causa partidária. Com uma esfera ideológica repleta de índoles socialistas, Sá Carneiro e Álvaro Cunhal são alguns dos exemplos que tem como referência, no que diz respeito a políticos e à política.

O ex-Presidente da Junta de Freguesia acredita que a sua entrada no partido ocorreu numa tentativa de procurar um espaço à esquerda, influenciado por António Guterres e Jorge Sampaio, “o primeiro, um dos maiores defensores do Estado Social e um dos últimos e verdadeiros humanistas do Partido Socialista português, e o último pela simplicidade, humildade e capacidade ímpar de gerar consensos à esquerda.” No entanto, segundo o próprio, em 2014, o PS tentou silenciar Vitor Paixão aquando da apresentação de uma moção num congresso em que não lhe foi possível estar presente, pois estava a convalescer de uma intervenção cirúrgica, em que defendia António Costa em detrimento de António José Seguro “porquanto achar este demasiadamente à direita e colado a Passos Coelho”. Nessa mesma moção identificava alguns nomes de históricos do partido que “já deveriam estar com as pantufinhas e pijama em vez de andarem a comer à conta do povo”, ficando mais tarde a saber que a parte crítica dessa moção tinha sido completamente omitida no referido congresso. Como consequência, demitiu-se imediatamente do cargo de presidente da secção de Beja do Partido Socialista e abandonou a militância. Com a exceção da Geringonça, que sempre apoiou e estaria disposto a continuar a apoiar, considera que desde há muito tempo que o PS deixou de ser um partido de esquerda, com uma base humanista do socialismo e, como tal, não se identifica, de todo, com a postura e posição atual do partido, “refém dos grandes grupos económicos”. “Enquanto assim for, será muito difícil, senão impossível, ser verdadeiramente o partido da esquerda democrática em Portugal”, justifica.

Quanto às políticas públicas que realizou durante o seu mandato, nunca terá sentido nenhum tipo de pressão de figuras superiores dentro do PS. Fez sempre o que achou mais correto para Beja: “verificaram-se acordos, tentámos sempre convergir, mas jamais por imposição, verdade seja dita”, remata o ex-militante do Partido Socialista.Para Vítor Paixão, acreditar que a política faz os políticos e que os políticos fazem a política é algo de qualidades humanas, pois “de forma mais ou menos consciente” o Homem é “um animal político”. Apesar de respeitar posições de políticos que aceitem fazer da sua atividade um ato de “asceta”, nobre e não remunerado, admite também que não lhe repugna que existam políticos que vivam confortavelmente por conta da política, desde que coloquem os interesses do povo acima dos seus interesses pessoais.

“Um país sem educação e sem cultura é um país moribundo, triste e perdido”

Quando questionado sobre se considera suficientes as verbas que o PS destina para a cultura, o coorganizador do SMSF defende que as verbas, em termos locais, não são distribuídas da melhor forma no que diz respeito à diversidade cultural. Referindo-se ainda ao exemplo do cante alentejano como “uma completa ausência de visão”, na divulgação, promoção e exportação. O outro desagrado apontado por Vítor Paixão é a “incapacidade” que existe na promoção da marca Beja e de “eventos que atraiam as pessoas, que marquem a diferença e que não se limitem a ser mais do mesmo”. Já em termos nacionais não se admira, pois, sublinha, neste país, a cultura é “quase sempre o parente pobre em matérias de orçamentos e por muito que cresçam nunca são suficientes”. Para si, um país sem educação e sem cultura é um país “moribundo, triste e perdido”, remata.

Sobre o futuro da cultura e da música, na cidade de Beja, e sobre a possibilidade de uma futura edição do festival SMSF, lê-se cansaço nas suas palavras: “confesso que estou quase a desistir”. A Associação Juvenil CulturMais apenas se irá manter se o Santa Maria Summer Fest regressar, pois foi a génese da sua criação, “em boa verdade durante muitos anos tive de “oferecer” a diversidade, ainda que algumas vezes até nem gostasse, mas chegas a um ponto que, ou tens prazer no que fazes, ou não vale a pena”, explica. Atualmente o executivo não tem maioria, o coorganizador do festival apresentou uma proposta aos vereadores da oposição, três da CDU e um de uma coligação de direita, que já manifestaram o apoio quanto ao regresso do festival. Ainda assim, duvida que se se venha a concretizar, “o melhor é continuar de cabeça levantada, sabendo que contribui para o desenvolvimento cultural da minha cidade e que fiz, juntamente com muitos outros, algo muito bonito e que está marcado na minha vida e no meu corpo”, conclui Vitor Paixão.