Maria da Conceição Vinagre, 73, sem domingos nem férias: o preço de construir uma vida

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Maria da Conceição Vinagre, 73, sem domingos nem férias: o preço de construir uma vida

Maria da Conceição Vinagre tem 73 anos e trabalha desde os 15. Natural do concelho de Arouca, chegou ao Porto ainda adolescente, com vontade de aprender, viver uma nova realidade e ganhar independência. Tinha familiares na cidade, mas rapidamente percebeu que não queria voltar à aldeia. Com os pais lavradores e uma infância marcada pelo campo, escolheu um caminho diferente: o do trabalho urbano, contínuo e intenso.

Foi no antigo Hotel Batalha, hoje Hotel Mercure, que começou a trabalhar. A ideia de ter o seu próprio negócio foi surgindo aos poucos. Primeiro, pensou num quiosque, depois num pomar, mas os riscos do investimento agrícola assustaram-na. Acabou por apostar numa tabacaria, por parecer mais segura: “Era à consignação, não dava tanto prejuízo.” A decisão foi dela. Não houve heranças nem ajudas. Comprou, investiu, lutou. “Foi por minha iniciativa”, repete.

Trabalhou em simultâneo noutras áreas. Chegou a ter uma perfumaria, dividia os dias entre negócios, como muitos comerciantes faziam antes da rigidez das oito horas laborais. A carga de trabalho era intensa, sem folgas fixas nem dias certos para descansar. “Agora não se trabalha como antigamente”, comenta. Não o diz com saudosismo, mas com a certeza de quem conhece o peso da responsabilidade.

Casou-se pouco depois do 25 de Abril. Já trabalhava no hotel e o marido numa fábrica de café. Nessa altura, ainda ganhavam bem, à percentagem. Mas com o fim desse modelo de remuneração, a margem apertou e a gestão tornou-se mais exigente. Mesmo assim, conseguiram comprar o prédio onde ainda hoje vivem e mantêm a tabacaria. Um edifício com mais de dois séculos, outrora ocupado por clínicas, médicos e até um clube de montanhismo. Hoje, está quase todo vazio. Só o primeiro andar está alugado como armazém, e no último piso mora a família.

A decisão de comprar o prédio foi estratégica: ou investiam ou teriam de sair. Deixaram os empregos estáveis e arriscaram. “Naquele tempo davam-me quase trinta contos para irmos embora, mas preferimos ficar.” Custou-lhes 80 mil contos, pagos com anos de trabalho, sem férias nem fins de semana. Venderam as casas de Miramar para conseguir saldar a dívida, um passo que hoje reconhece ter sido um erro. “Mais valia termos pedido o dinheiro ao banco.”

O trabalho invadia tudo: a casa, a rua, a própria rotina familiar. Quando o filho era pequeno, levava-o consigo com uma cesta de palha e a comida feita de casa. Aquecia os pratos numa pequena cozinha improvisada dentro da loja. Lavava a loiça em casa, porque não havia casa de banho no espaço comercial. Tudo era feito com método e sacrifício. “A vida foi assim.”

O filho, que hoje tem quase 50 anos, cresceu atrás do balcão. Começou a ajudar aos oito, fazia trocos, atendia clientes, ia pagar contas com dinheiro vivo ainda antes de completar nove anos. “Chamavam-lhe máquina calculadora”, conta. Sempre teve uma aptidão natural para os números. Estudou no ISCAP, em Contabilidade e Administração, queria ser economista, chegou a considerar Direito, mas ficou a meio. Deixou duas cadeiras por concluir e nunca finalizou o curso. Apesar disso, era procurado por empresas e tinha reputação de ser bom. Segundo a mãe, o ambiente familiar, marcado por nervosismo e pressões, acabou por pesar no seu percurso.

Hoje dedica-se à restauração de motas, uma paixão antiga. Compra peças, revende, mantém atividade própria e continua a ajudar os pais no negócio da tabacaria. Maria lamenta que ele não tenha seguido engenharia mecânica, mas compreende o caminho que escolheu: “Podia estar numa empresa com serviço melhor, mais limpo, mas ele apaixonou-se por isto.”

Ao longo dos anos, o negócio foi resistindo às mudanças da cidade e do consumo. Já não há jovens a comprar jornais ou revistas. O fluxo de clientes diminuiu drasticamente com as obras, o encerramento do metro, e mais tarde, a pandemia. “Antes via-se muita gente a entrar, jovens, compravam tabaco, raspadinhas, jornais. Agora quase ninguém mora aqui.”

As dificuldades não são novas, mas tornaram-se mais agudas. A transformação da zona do Bolhão, com a expulsão de antigos moradores e a proliferação de espaços de restauração voltados para o turismo, criou um vazio difícil de colmatar. “Consoante os antigos vão saindo, põem tudo para comes e bebes.”

Ainda assim, Maria e a família resistem. Porque o espaço é deles, porque não têm renda para pagar, porque tudo foi construído com esforço. “Se fecharmos temos de indemnizar os empregados. Nós temos tudo direitinho.” Diz que os grandes comerciantes fogem, e os pequenos é que ficam, muitas vezes sem apoio.

Hoje, a tabacaria vende sobretudo a estrangeiros. São eles que compram miniaturas de carros, tabaco e alguns jornais. As pessoas de mais idade ainda procuram revistas, mas em número reduzido. Os tempos mudaram, os hábitos também.

No fim, o que fica é o orgulho de quem construiu uma vida sem atalhos. “Foi tudo a nosso pulso, sem férias, sem domingos, sem nada.” A frase resume décadas de luta, decisões difíceis e renúncias. Mas também uma história de persistência, familiaridade e um forte sentido de dever. Maria não fala de sacrifício com pesar, mas com consciência. E é nessa consciência que está a força da sua história.