“A preocupação de um imigrante não é votar, é trabalhar”
Entre saudades e novos começos, Marianna Seyr vive o quotidiano entre dois mundos: Paraná, no Brasil, que deixou na adolescência e a cidade do Porto, com Campanhã como ponto de chegada. Numa reportagem que cruza gastronomia, cultura, memórias e identidade, revela-se o que é ser jovem e imigrante num país que ainda aprende a acolher.
À chegada a Campanhã, na zona oriental da cidade do Porto, ouve-se vozes apressadas de um centro urbano em constante movimento. A estação fervilha com a azáfama de quem chega e parte: autocarros, comboios, metros, viaturas de transporte público. Campanhã é, para muitos, um local de passagem, um lugar onde se espera entre destinos.
A alguns metros deste ruído, fica a Rua Pinto Bessa, onde se encontra um pequeno café “Broas e Broinhas” onde o tempo abranda. É ali, num recanto mais calmo, que Marianna Seyr, 21 anos, partilha a sua história com um sorriso aberto e um sotaque doce.
Marianna tem nacionalidade austríaca, mas nasceu e cresceu no Brasil, onde viveu até aos 13 anos. A mudança para a Europa surge num contexto conturbado, incertezas dentro da sua família, que decidiu antecipar-se a possíveis instabilidades. “A questão não era tanto financeira”, explica, “era mais o que vai acontecer no futuro quando o Bolsonaro chegou ao poder.”
Quando decidiu emigrar, a primeira paragem foi na Áustria. No entanto, não se sentiu em casa. Ao fim de apenas uma semana, desistiu da ideia e seguiu caminho até Portugal um destino cujo clima emocional, parecia mais familiar e acolhedor. “Lá as pessoas são muito frias”, diz, “então quis vir para Portugal porque Portugal é mais calor.”
A escolha recaiu sobre Valença, no norte de Portugal. Uma cidade pequena, onde se deparou com o primeiro grande obstáculo: a língua. Apesar de português ser, em teoria, a sua língua materna, a variação europeia parecia-lhe um idioma novo. “Eu sentia que era tudo diferente”, admite.
Também o sistema de ensino exigia outra lógica de pensamento. No Brasil, conta Marianna, os conteúdos escolares eram mais amplos e generalistas, enquanto em Portugal encontrou matérias específicas e mais exigentes para quem estava a adaptar-se a uma nova realidade. Os primeiros tempos foram difíceis, marcados pelo isolamento e pelo frio, esse outro elemento que nunca fizera parte da sua rotina tropical. “No inverno de Portugal, não estava tudo bem. A gente não sabe o que é frio.”
Na ausência de relações próximas na nova cidade, os amigos online tornaram-se a principal companhia.
“A preocupação de um imigrante não é votar, é trabalhar”
Apesar de viver há 8 anos em Portugal, Marianna não tem direito de voto. Tem passaporte austríaco, o que limita a sua participação política a nível nacional. Mas para ela essa nunca foi uma prioridade. “Quando um imigrante chega aqui, ele está mais preocupado em começar a trabalhar”, explica. “As pessoas do Brasil vêm procurar a estabilidade financeira e a segurança.”
A experiência desta jovem mostra-lhe que o preconceito de que os imigrantes “roubam empregos” não tem fundamento. Marianna defende que a maioria chega com vontade de trabalhar. “Ninguém quer tirar o emprego de ninguém”, garante. “Aliás, vêm para trabalhar em fábricas.”
Paladares que aproximam culturas
Se há algo que nunca deixou verdadeiramente para trás foi a comida. A avó paterna, figura da infância no Brasil, em Londrina, é uma cozinheira de mão cheia e marcava os dias com cheiros e sabores que ficaram gravados na memória. “É uma saudade muito grande de voltar para o passado e ao mesmo tempo continuar no presente com tudo o que conquistei aqui”, diz com ternura.




Entre as muitas memórias que carrega consigo, há um sabor que se impõe com especial doçura: a paçoca. “A minha comida favorita do Brasil é paçoca”, partilha Marianna, com entusiasmo nos olhos. Este simples doce de amendoim, comum nas festas populares do Brasil, “é mais do que um sabor “, diz, ao refletir sobre o valor afetivo que o prato carrega. Feita com “amendoim, açúcar e farinha de mandioca”, a paçoca funciona como um verdadeiro gatilho de emoções que a transporta para a infância, para os braços da família e para os dias quentes no Brasil.
Só depois de chegar a Portugal é que passou a comer mais comida brasileira, confidencia. Talvez numa tentativa de se reconectar com as suas origens, começou a frequentar restaurantes e supermercados brasileiros. Mas nem só de nostalgia se faz o paladar em Portugal, visto que encontrou também novos sabores de eleição. E já há um prato que se destaca em Portugal: “É a francesinha”, afirma.
Campanhã, ponto de chegada
Foi o teatro que a levou do norte rural até ao Porto. Atualmente, estuda Teatro na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo (ESMAE). A mudança para uma cidade maior exigiu reaprendizagens. No início, tudo parecia novo e desorientador. “No ano que eu vim para cá só conhecia casa e Campanhã”, recorda. “A única coisa que eu sabia usar era o trem, era tanta confusão, tantos carros.”
Campanhã acabou por se tornar a sua âncora. Era o ponto de partida e de chegada, o lugar que conhecia melhor e onde se sentia segura. Com o tempo, a cidade foi-se abrindo e Marianna passou a circular por outros espaços, mas mantém com o bairro da estação uma ligação afetiva forte. “Eu e Campanhã somos assim, bem unidos.”



Marianna a representar
Entre expressões e sonhos
Hoje, entre memórias que ainda lhe aquecem o peito e planos que desenha com cautela, Marianna sonha alto, mas sem nunca perder o chão. Os sonhos são ambiciosos, mas vêm acompanhados de um sentido de responsabilidade e de uma consciência clara do caminho que tem pela frente. “Os meus maiores sonhos são fazer tudo… Quem sabe escrever, cantar… eu sonho muito… mas coisas que eu realmente queria fazer era ir para o Brasil para trabalhar em teatro lá”.
Apesar de se sentir integrada, há pequenos momentos do quotidiano em que se lembra que está longe do país onde cresceu e ainda há expressões que não reconhece de imediato. Apesar da fluência no idioma, confessa que, por vezes, se perde no significado de certas frases ou ditados populares usados no dia a dia. “Há coisas que vocês dizem que eu fico assim… O quê?”, diz entre risos.
Essas diferenças linguísticas já lhe custaram alguns embaraços, confessa. Houve um dia em que não percebeu o que significava “TCP” (Trabalhos para Casa) e acabou por chegar à aula de mãos vazias, sem o trabalho feito. Um mal-entendido simples, mas que ilustra os desafios de adaptação a um novo sistema escolar e a diferentes expressões que ainda não dominava por completo.