A alma angolana que ferve em Campanhã

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A alma angolana que ferve em Campanhã

Angelina Balthazar traz Angola para a mesa do restaurante Compadre, em Campanhã. Numa freguesia da cidade do Porto em transformação, entre a diversidade cultural e os desafios sociais, a cozinha é o lugar onde a memória e a esperança continuam a ferver.

[Texto de Miguel Dias. Imagens e edição de Beatriz Miranda] 

Antes de se servir um prato no Compadre, na zona oriental da cidade do Porto, em Campanhã, há já uma história inteira a cozinhar. Entre o som da panela de pressão e o cheiro de especiarias como açafrão e pimenta preta, há uma mulher com as mãos no passado e os olhos no futuro. Chama-se Angelina Balthazar, tem 49 anos, e em setembro abre a porta dos 50. Mãe de duas filhas, de 32 e 25 anos, atravessou o Atlântico de avião há três anos, provinda de Luanda. Não veio de férias. Veio em busca de um lugar onde pudesse “recomeçar” um caminho onde pudesse ter mais condições de vida, onde arranjasse trabalho e onde pudesse ter as melhores condições para oferecer às filhas. Encontrou o seu espaço atrás de um balcão de cozinha.

“Custa, custa estar longe”, diz com um sorriso triste. A filha mais velha ficou em Luanda, Angola. A mais nova vive em Lisboa. “A Bruna Alexandra. Vai entrar para a faculdade para o ano.” Sorri de novo, mas com orgulho, porque conta com a entrada da filha na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa. Angelina vive em Vila D’Este, em Vila Nova de Gaia, mas vem todos os dias de metro para a zona oriental do Porto, em Campanhã, para trabalhar no restaurante O Compadre. Um espaço discreto, mas frequentado por um público cada vez mais curioso. Sobretudo quando é dia de moamba.

Um gosto que começou cedo

Angelina cresceu no município de Kilamba, em Luanda. Mas a infância ficou marcada pela perda da mãe quando tinha apenas 13 anos. Foi a tia quem lhe deu “estrutura”, conforme enfatiza. “Ela ensinou-me tudo, cozinhar, cuidar. E a minha avó também.” Cresceu a ver fazer bolos, biscoitos fritos “que pareciam saídos do forno”, pratos que não se esquecem porque têm o sabor da casa.

Durante toda  a vida cozinhou apenas para a família. Profissionalmente, só se iniciou na cozinha quando chegou a Portugal. “Em Angola queria trabalhar, mas estava muito difícil. Vim para cá para ter uma “vida normal”, isto é, uma vida onde fosse possível ter rotinas e melhores condições de vida. O primeiro impulso era estudar culinária. Queria conhecer a fundo a cozinha portuguesa e as suas influências. Talvez tenha sido paixão à primeira vista, confessa, o facto de ser fã “do bacalhau com natas, do bacalhau à Zé do Pipo”, e é apaixonada pelos pastéis de nata, sobremesa de eleição. 

A cozinha portuguesa encantou-a. Mas foi a angolana que a segurou, pelo nível de conhecimentos necessários. “Aqui faço moamba e às vezes o mufete. É peixe grelhado com mandioca, banana cozida, feijão e molho de cebola.”. Pratos que os clientes apreciam “a moamba sai muitos”, “os estrangeiros gostam”, garante. 

ReceitaMoamba de galinha
IngredientesModo de preparação

1 galinha cortada aos pedaços
-6 dentes de Alho
-2 colheres (sopa) de óleo de palma
-1 Cebola
-3 Tomates
-1 folha de Louro
-2 Malaguetas
-1 Courgette
-500 ml Água
-100 g de farinha de mandioca
-200 g Quiabos
Coentros
-Azeite

1. Comece pelo tempero da galinha. Numa taça pequena coloque 6 dentes de alho picados, 2 colheres de sopa de óleo de palma e sal. Misture tudo e espalhe a pasta pela galinha.
2. Deite um fio de azeite num tacho ao lume e junte 1 cebola picada.
3. Corte 3 tomates em cubos, tire o excesso de sementes e coloque numa taça.
4. Ao tacho, junte 1 folha de louro, 2 malaguetas, os cubos de tomate e a galinha. Tape o tacho e deixe a cozinhar.
5. Quando a galinha já estiver quase cozinhada, acrescente 1 curgete às rodelas e 200 g de quiabos à galinha. Deixe apurar.
6. Para o funge, ponha um tacho ao lume e deite 500 ml de água, tempere com sal e deixe levantar fervura. Adicione 100 g de farinha de mandioca sempre a mexer para não criar grumos. Quando estiver pronto coloque numa taça para servir.
7. Finalize com coentros picados e sirva como acompanhamento da Moamba.

Cozinhar como forma de resistir

A gastronomia é uma das formas mais de preservar a identidade cultural em contexto de migração. Angelina sabe isso melhor do que ninguém. “Cozinhar mata as saudades”, diz. Ainda que nem todos os ingredientes locais estejam disponíveis, a cozinheira reinventa o que pode. “Aqui faltam folhas. Como a kizaka” [um prato típico da gastronomia angolana, feito com folhas de um pequeno arbusto com raízes comestíveis chamadas mandioca].

“Ainda sinto falta disso. Mas já há algumas coisas. Por exemplo, o feijão de olho de pau. Já consigo arranjar.” – Angelina Balthazar

Ela empenha-se sempre em ser fiel ao que aprendeu. “Eu tento. Tento manter os sabores, a tradição.” Mesmo que o peixe seja diferente, mesmo que os produtos sejam outros, ela adapta “sem perder a alma”. “Nós temperamos muito. A comida portuguesa não tem tanto. Mas aos poucos vão-se habituando.”

Não está sozinha nessa missão. Em Campanhã, a diversidade cultural está em crescimento. “Vêm moçambicanos, cabo-verdianos, brasileiros. E os europeus também. Holandeses, alemães, espanhóis. Aparecem muitos por aqui. A estação está mesmo aqui, ajuda muito.”

Ecos do Kimbundu em Campanhã

Campanhã é uma freguesia com tradição operária e ferroviária e hoje é uma das mais multiculturais da cidade do Porto. Mas também uma das que mais luta contra a exclusão social. De acordo com o Diagnóstico Social elaborado pela Câmara Municipal do Porto, é uma zona com fragilidades no acesso à educação, habitação e emprego, mas também com forte dinamismo comunitário. A gastronomia, aqui, não é só negócio. É cultura, é pertença, é identidade. 

Portugal tem sido, ao longo das últimas décadas, um dos destinos mais escolhidos pelos angolanos em busca de melhores condições de vida, num percurso marcado por laços históricos, linguísticos e afetivos. Só entre 2017 e 2023, o número de imigrantes angolanos no país mais do que triplicou, passando de cerca de 17 mil para mais de 55 mil residentes legais, segundo dados oficiais citados pelo Novo Jornal. Este crescimento é visível também na cidade do Porto, onde, de acordo com o Observador, residiam em 2022 2.285 cidadãos angolanos, tornando o município no terceiro do país com maior presença desta comunidade, apenas atrás de Lisboa e Setúbal. Esta presença não se limita aos números, traduz-se em contribuições visíveis para a vida económica, social e cultural da cidade, especialmente em freguesias como Campanhã, onde a diversidade étnica se tornou parte do quotidiano. É nesse contexto que histórias como a de Angelina ganham significado, não apenas como percurso individual de migração, mas como expressão concreta de um fenómeno coletivo que está a moldar silenciosamente a nova face do Porto. 

Kimbundu é uma língua bantu falada principalmente em Angola, especificamente nas províncias de Luanda, Bengo, Malanje e Cuanza Norte.É a segunda língua africana mais falada em Angola e uma língua importante na cultura e identidade da região. A palavra “kimbundu” significa “língua dos mbundu” ou “língua dos ambundu”, que são os habitantes da região. 

Em cada prato do Compadre há uma história

Quando cozinha mufete, Angelina volta para casa. É como se estivesse de novo em Angola, “nessa viagem que os odores e paladares permitem, ao revisitarem a memória emocional”. A cortar peixe fresco, a pôr a banana a cozer, a mexer o feijão, é como se a angolana estivesse a sentir o calor da terra. O mesmo acontece com a moamba. É o prato que mais lhe puxa as memórias. “A moamba. Sempre a moamba. Quando estou a fazer, parece que estou lá.”

ReceitaReceita de Mufete de peixe carapau
Ingredientes Modo de preparação
1 – Meio quilo de feijão
2 – Seis peixes carapau, galo ou cacusso (pode por mais peixe se quiser)
3 – Uma mandioca grande
4 – Três ou quatro bananas pão
5 – Seis ou sete batata-doces
6 – 2 cebolas grandes
7 – Alho
8 – Uma lata de óleo de palma
9 – 1 chávena de farinha musseque
10 – Vinagre, azeite e sal
1 – Cozinha o feijão numa panela de pressão por cerca de uma hora e meia.
Depois de estar pronto, ponha numa panela meia lata de óleo de palma, o feijão e sal a gosto, deixando cozer em lume brando até ficar bem “apuradinho”.
2 – Lave e escame bem o peixe, tempere-o com sal pisado ao alho, limão ou vinagre, deixando o tempero entrar por cerca de 30 minutos. A seguir grelhe num grelhador ou de preferência num fogareiro.
3 – Descasque a mandioca, lave muito bem em água corrente e ponha a cozer.
4 – Lave a banana pão e a batata-doce, cosa-as em panelas separadas vá picando para ver se estão prontas. Elas ficam prontas quando estiverem molinhas.

Em Portugal, nem todos conhecem a comida angolana. Mas se provarem, gostam. Nem todos gostam, claro. O funge, por exemplo, nem todos gostam.” O funge é uma massa feita de farinha de mandioca, explica. Espessa, densa, serve de acompanhamento. Um prato de resistência, porque vai muito além de uma consistência espessa. É um alimento que carrega uma forte carga cultural e histórica: é a base da alimentação tradicional angolana que resistiu ao tempo, às dificuldades económicas e aos processos de globalização. Mesmo quando novos sabores e influências aparecem, o funge mantém-se presente na mesa das famílias, como símbolo de identidade e ligação às raízes. 

ReceitaFunge de milho à moda angolana
IngredientesModo de preparação
-1/2 litro de água
-Farinha de milho branco ou amarelo o quanto baste
1. Coloque a água em uma panela e leve ao fogo brando até ficar um pouquinho morna.
2. Adicione 1 chávena de farinha de milho e mexa sem parar até ficar cremoso como um mingau e levantar fervura.
3. Deixe ferver por alguns minutos e adicione aos poucos 3 chávenas de farinha de milho ou menos, até engrossar, sem parar de mexer com uma colher de pau, durante uns 15 minutos.
4. Coloque numa marmita térmica, coma em seguida.

O público português está a descobrir, aos poucos esta gastronomia. Com tempo, com curiosidade. “Eu acho que se houvesse mais restaurantes africanos, mais negócios assim, podia-se divulgar melhor”. Mas é complicado. São culturas diferentes, gostos diferentes. Ainda há barreiras.

Apesar disso, acredita que a comida pode ser ponte. “Sim, através da alimentação vem a cultura. Tem os vinhos, tem a música. Tem tudo.” No Compadre, onde se ouve música africana e se servem pratos alentejanos, há essa fusão espontânea.

“O senhor Carlos gosta muito de Angola, de Cabo Verde. Toca-se muita música africana.” – Angelina

O sonho que ainda cozinha

Angelina não se queixa. Conta que já passou por trabalhos duros e ambientes difíceis. “Antes de vir para aqui, trabalhei num restaurante onde o trabalho era pesado. E os colegas… era difícil. Aqui gosto do que faço. Aqui encontrei apoio. Força.”

Tem fé e serve-se dela como alicerce para enfrentar dificuldades. “Deus foi o meu suporte. Quando não há ninguém, entrego tudo nas mãos Dele.” Mas tem também objetivos concretos.

“O meu sonho é ter o meu próprio restaurante. 100% angolano. Se calhar em Angola.”. A meta será, talvez, quando as filhas estiverem formadas academicamente. A filha mais nova quer ser enfermeira.

“Acho que ela vai conseguir. É muito determinada.” -Angelina Balthazar

Angelina conquistou muito. “Vim sozinha, sem garantias. Hoje tenho um trabalho que gosto. Cozinho.” Faz o que adora e consegue partilhar a sua cultura.

Gastronomia como desenvolvimento

Em Campanhã, freguesia marcada por décadas de estagnação e desvalorização, a comida pode ser uma das ferramentas de transformação. A presença de cozinheiras como Angelina é mais do que uma nota de cor — é uma semente. De diálogo, de respeito, de futuro.

Num território que mistura prédios devolutos com centros comunitários, a cozinha representa um ponto de encontro possível. Um restaurante como o Compadre pode ser lugar de cruzamento entre Angola e Portugal, entre o passado e o presente, entre a memória e o que ainda está por vir.

Antes de terminar, Angelina deixa um conselho a todas as mulheres imigrantes que estão a começar agora a viver um sonho. “Que seja determinada. Que acredite nos seus sonhos. Que entregue tudo nas mãos de Deus. Vai dar certo.”

E repete, emocionada.
“Vai dar certo.” – Angelina Baltazar