A especiaria moçambicana que tempera o Porto pelas mãos de Orlanda

À mesa de Campanhã, há um pedaço de Moçambique que se serve à mesa. Orlanda Barbosa chegou ao Porto com 14 anos e, desde então, nunca deixou de temperar a cidade com os sabores, as cores e a alma da sua terra natal. Da cozinha herdada da infância em Maputo ao restaurante no número 174 na rua de Pinto Bessa, encontra-se um ponto de encontro e de partilha, de uma estória que cruza o esforço, as raízes e os sabores.
Orlanda Barbosa instalou-se na cidade invicta em 1980. Emigrou de Moçambique com os pais e, desde então, fez do Porto a sua casa. Está na cidade há 45 anos. Natural de Maputo, em Moçambique, com raízes familiares na Zambézia, não esconde o orgulho em ser moçambicana, apesar de estar naturalizada portuguesa. Casada, mãe de três filhos e avó de quatro netos, construiu uma vida em Portugal com um forte desejo de manter viva a cultura de origem.
A infância em Moçambique foi marcada pela presença da mãe, enfermeira, que apesar do pouco tempo livre, insistia que Orlanda passasse tempo com os funcionários da casa na cozinha.
Na infância, ao ver e aprender como cozinhar, iniciou a ligação com a comida moçambicana. Quando chegou a Portugal, começou por trabalhar em várias áreas, entre as quais, limpeza, jardinagem e costura. A entrada no mundo da restauração foi através da Associação Portugal-Moçambique, no Porto, sendo que a experiência e o gosto cresceram, e, por isso, decidiu avançar por conta própria.
“Como gostava de cozinhar optei por ir para lá e depois de lá estar ganhei o gosto e resolvi abrir um espaço meu.”
A empreendedora abriu, primeiro, as portas do primeiro restaurante na Rua das Taipas. Era um espaço que misturava gastronomia, música e dança africana.
Estava ali desde 2012 quando, durante a pandemia da COVID-19, foi obrigada a fechar. O senhorio recusou-se a ajustar as rendas, apesar das dificuldades que o setor atravessava. Sem possibilidade de manter o espaço, procurou uma nova oportunidade em Campanhã.
“O meu senhoria na altura não me ajudou nas rendas e eu não tive possibilidade para continuar a pagar”
A mudança não foi fácil pois era uma zona menos movimentada na altura, mas decidiu arriscar.
“Campanhã está a crescer, já se nota em três anos que estou aqui e acho que vai crescer e vamos conseguir continuar aqui”
O tempo da pandemia foi especialmente difícil. Teve de fechar, adaptar-se às limitações de espaço e ao medo constante. Ainda assim, criou um ambiente seguro que muitos clientes passaram a chamar de porto seguro. Entre medidas sanitárias e apoio mútuo, conseguiu manter o negócio vivo.
O novo restaurante, embora num bairro diferente, mantém a mesma essência.
“O meu espaço é todo colorido e mostra bem as minhas raízes.”
O espaço é colorido, feito à imagem da cultura de Moçambique, e junta gastronomia e artesanato. Apesar das dificuldades económicas iniciais, Orlanda acredita no potencial da zona. Diz que nos últimos três anos Campanhã tem crescido, e que cada vez mais pessoas começam a conhecer o restaurante.
Muitos dos antigos clientes da Rua das Taipas voltaram a procurá-la, sendo que reconhecem nela o sabor e o acolhimento de sempre.
A cozinha de Orlanda é feita com amor e intenção. Não acredita em pratos padronizados ou comida congelada. Faz tudo em pequenas quantidades, no dia, e só cozinha aquilo que gosta de comer. “Se não gosto, não faço”, diz com firmeza. Rejeita a expressão “prato do dia”. Faz uma panela de cada prato, e “quando acaba, acabou”. Acredita que quem visita nota a diferença e valoriza o cuidado.
A comida moçambicana, explica, é uma comida de alma. Mistura influências portuguesas, indianas, goesas e africanas. Usa-se muito o caril, mas com o toque local, isto é, com leite de coco e especiarias mais suaves. Muitos clientes dizem-lhe que, ao provar a comida, viajam para a infância. Essa ligação emocional considera ser um dos maiores reconhecimentos.
Apesar de estar há décadas em Portugal, Orlanda confessa ter saudades pontuais de Moçambique – para visitar, passear e ver a família.
“Só fui duas vezes em 45 anos, a última em 2019.”
Mas sente que a sua vida está toda cá. Os pais e o irmão já faleceram e construiu família na invicta. Já visitou Moçambique duas vezes, sendo a última em 2019.
A comunidade moçambicana com que se cruza é pequena. Recebe mais angolanos e outros africanos, assim como portugueses que viveram em Moçambique e estrangeiros curiosos.
“Por exemplo, os estrangeiros chegam aqui e adoram. Eu neste momento tenho aqui mais clientes estrangeiros.”
Muitos deles tornam-se clientes regulares. No novo restaurante, inclui também pratos portugueses, pois percebeu que a diversidade ajuda a atrair mais público, sobretudo por estar num local de passagem.
“Aqui, neste restaurante, também tenho comida portuguesa. Tenho pessoas que já vêm comer todos os dias e eu faço a ementa para eles diariamente.”
Orlanda enfrenta desafios como qualquer empreendedora. Lamenta que muitos colegas da restauração na zona não a visitem. Pelo seu lado, tenta apoiar os negócios locais sempre que pode.
Pede mais mente aberta, mais espírito de comunidade.
Nas redes sociais, valoriza a divulgação, mas considera que quem faz avaliações negativas deve conversar primeiro com a proprietária ou compreender o contexto.
“Aparece muito poucas críticas más. E as que aparecem são pessoas que não perguntam nada.”
Relata episódios de preconceito, como comentários depreciativos sobre comida africana ou críticas infundadas sobre o ambiente no restaurante. Ainda assim, mantém-se firme ao preferir não responder a críticas e continuar a trabalhar.
Fora do restaurante, Orlanda participa em vários eventos, como o Primavera Sound e o Festival Continente, nos quais já representou os seus sabores.
Também marca presença, todos os verões, em feiras no Algarve – Tavira, Santa Luzia, Cabanas – onde trabalha durante o dia e celebra à noite com família e amigos.
Diz que não ganha muito, mas que vale pela experiência, pelas pessoas e pela alegria. Em 2023, juntou toda a família, e passou o mês de agosto no sul do país a conciliar o trabalho com o tempo de lazer.
“Eu vendo na feira para no dia seguinte gastar a comer e beber, não fico com dinheiro mas dá para estar ali.”
Hoje, com o novo espaço já remodelado e a funcionar, Orlanda espera finalmente desfrutar mais do seu trabalho, sem tantas preocupações. Continua a cozinhar todos os dias, com a mesma paixão. Acredita que a comida é uma forma de contar histórias, e que o restaurante é mais do que um negócio – um elo entre culturas e um espaço de partilha.
“Toda a gente que vem aqui tem histórias para contar.”



