Fronteiras invisíveis entre a Índia que ficou e o Porto que se entranhou
Num recanto discreto de Campanhã, na cidade do Porto, entre o som dos comboios e a ressonância das histórias migrantes, vive Jovel, vindo de Kerala, no sul da Índia. Estudante de Bioengenharia na Faculdade de Engenharia do Porto, Jovel carrega na mente as marcas de uma travessia entre continentes, crenças e sabores. Esta é a história de alguém que, entre especiarias e fórmulas científicas, procura reconstruir-se num país que cruza a herança colonial com os laços da sua própria identidade.

Na periferia oriental do Porto, com o barulho do metro como som de fundo, os comboios a costurarem a paisagem entre o rebuliço da estação de Campanhã e a pacatez das colinas urbanas, vive Jovel Varghese Jose — um nome cuja história convida a repensar a forma como o mundo moderno constrói, fragmenta e reconstrói identidades. Com 26 anos, Jovel vive numa pequena casa na Rua Monte da Estação há três anos. Entre o cimento portuense e as memórias de um passado tropical, em Kerala, na Índia, desenha-se um dos muitos Jovel carrega em si a herança dos seus pais. Do pai, homem religioso, herdou a solenidade com que ostenta uma cruz de prata espanhola ao peito, como se fosse um amuleto. Da mãe, que foi professora, guarda a lembrança do ensino, agora refletida nos pequenos gestos do dia a dia. percursos invisíveis que formam o tecido humano da Europa contemporânea. A cidade do Porto acolhe-o com a sua bruma suave e a amabilidade dos que sorriem com os olhos, mas a repercussão dos trópicos do sul da Índia permanece em cada gesto, em cada especiaria que aromatiza o ar da sua cozinha, em cada frase que desliza entre as línguas inglesa e portuguesa,como se navegasse entre dois tempos.
Kerala não é apenas um nome no mapa. É um arquétipo de cor, espiritualidade e sabor. . Tem dois irmãos, um com 26 e outro com 30 , e o tecido da família é constante, mesmo à distância. “Os portugueses vieram primeiro pelas especiarias… pimenta preta”, diz Jovel recordando a época da História em que o investimento nas viagens era o ímpeto de uma portugalidade em busca do outro. . “Muitas tradições nossas devem-se a esse passado… talvez por isso o meu apelido seja Jose”, afirma, como quem procura uma identificação com quem fala.
O mapa afetivo de Jovel
Na sua cidade os homens vestem uma peça de roupa branca chamada mundu, semelhante a uma toalha. “É complicado às vezes por causa da humidade. Mas é muito parecido com o clima dos Açores”, diz-nos , num paralelo curioso entre dois arquipélagos separados por mundos. Traz ao pescoço uma cruz espanhola, presente do pai, símbolo de fé ortodoxa, como marca visível de um legado que não esquece. “Na Índia era bastante religioso, aqui sou mais mente aberta. Mas respeito. Os meus pais não acreditam em depressão, ansiedade, mas continuam a ser muito gentis.”

O pai de Jovel é padre ortodoxo, “um homem de fé firme”, cuja cruz espanhola Jovel nos mostra ao pescoço. Não é um ornamento, indica, mas um testemunho de uma herança que carrega e de que se orgulha. A mãe foi professora.Hoje já não exerce, mas mantém a pedagogia viva nos olhos com que observa o mundo. Os dois irmãos completam a constelação familiar, mas é da mãe que Jovel herda um objeto invulgar: um anel feito de pele de elefante, carregado de simbolismo.“Na nossa cultura, o elefante é o animal-estado. Representa a força mental, a prosperidade. Todos os homens e mulheres devem carregar essa força. É um mito, mas também é verdade.”
Jovel não esconde as dificuldades. Perdeu a bolsa de estudo ao mudar-se para a Alemanha. “Sinto dificuldades. Mas a minha família ajuda-me.” O pagamento da casa é complicado Afirma como quem diz que respira com um peso nos ombros, mas com coragem. Fala com naturalidade: “É um tema bastante falado atualmente. “No Porto descobriu algo que na Alemanha nunca encontrou: comunidade. “Quando estive na Alemanha, sentia-me realmente triste. Queria voltar a casa. Não à Índia, mas ao Porto. Não é o país que faz as pessoas felizes, mas as pessoas. As pessoas dizem: ‘Ei, tens grandes oportunidades na Alemanha.’ Mas as pessoas lá não são boas. Eu sinto-me em casa no Porto só pelas pessoas.”
A palavra “saudade” escapa-lhe em português, como se não existisse substituto à altura noutra língua. Foi num grupo de amigos — entre madeirenses, açorianos e portuenses — que encontrou o seu lugar. “Pela primeira vez senti-me parte. A canção dos NAPA na Eurovisão… eu sinto o mesmo. Se sair deste lugar e voltar à Índia, eu perco este lugar.”
Na gastronomia, encontra-se um dos elos mais firmes com a sua origem. “Usamos o coco para tudo”, conta, com um brilho nostálgico no olhar. “Paprica, gengibre, açafrão… tudo é temperado com intensidade.” Mas entre tantos sabores, há ausências que pesam. “O que mais sinto falta? Da carne de búfalo — aquele picante, o bife frito. E do fish curry.” Faz uma pausa, antes de concluir: “Ah, e o festival Onam… é um festival de comida. Sinto mesmo falta disso.”Ao partilhar estas memórias gustativas, Jovel não fala apenas de sabores, mas de celebrações, de pertença, de comunidade — de tudo o que o alimento pode simbolizar para quem está longe de casa.
De Kerala ao Porto, Jovel tempera a saudade com história e especiarias
O #infomedia atravessa a cidade com Jovel numa tarde de quarta-feira até um pequeno, mas vibrante, supermercado escondido entre os muros austeros da zona da Escola Secundária Carolina Michaelis: o Alaska Discount Internacional (Licor & Indian Grocery). Entre sacos de arroz basmati empilhados, ramos de coentros frescos e pacotes coloridos de especiarias, os olhos de Jovel brilharam ao encontrar dois ingredientes que lhe são essenciais — cúrcuma e malagueta verde.


À noite, o apartamento encheu-se do aroma envolvente de um prato que parecia conter um pedaço da sua terra natal— o Dal curry with beef. Começou por deixar as lentilhas de molho em água, permitindo-lhes absorver suavemente o tempo e a preparação. Enquanto isso, com precisão quase cerimonial, picou cebolas, gengibre, alho, malaguetas verdes e tomates, equilibrando as quantidades com a intuição que só a experiência dá.
Na frigideira quente, com uma base de manteiga e azeite, refogou os ingredientes juntamente com folhas de caril até libertarem o seu perfume inconfundível. Depois vieram as especiarias: açafrão, pimenta preta, garam masala, sal e coentros em pó, tudo fundido com um pequeno copo de água. Quando as lentilhas amaciaram, incorporou os tomates, a carne de vaca, folhas de coentros e de feno-grego, finalizando com o toque ácido e profundo do limão e da água de tamarindo. Cozinhou por cerca de vinte minutos, em lume médio, enquanto o tempo se dissolvia no vapor e na conversa.
Ingredientes: Lentilhas (quantidade a gosto) Cebola Gengibre Alho Malaguetas verdes Tomates Folhas de caril Manteiga Azeite Açafrão Pimenta preta Garam masala Sal Coentros em pó Carne de vaca Folhas de coentros Folhas de feno-grego Sumo de limão Água de tamarindo Modo de preparação: Demolhar as lentilhas: Coloque as lentilhas de molho em água durante 30 minutos para amolecerem. Preparar os legumes: Enquanto isso, pique finamente a cebola, o gengibre, o alho, as malaguetas verdes e os tomates. Ajuste as quantidades ao seu gosto. Refogar os temperos: Aqueça uma frigideira com um pouco de manteiga e azeite. Junte a cebola, o gengibre, o alho, as malaguetas e as folhas de caril. Refogue até libertarem o aroma. Adicionar as lentilhas: Escorra as lentilhas demolhadas e junte-as à frigideira. Envolva bem com o refogado. Temperar: Adicione o açafrão, a pimenta preta, o garam masala, o sal e os coentros em pó. Junte um pequeno copo de água para evitar que os ingredientes queimem. Cozinhar as lentilhas: Deixe cozinhar até as lentilhas ficarem macias. Depois, adicione os tomates picados e continue a cozinhar. Introduzir a carne e os frescos: Acrescente a carne de vaca cortada em pedaços, as folhas de coentros e de feno-grego. Junte também o sumo de limão e a água de tamarindo. Finalizar: Cozinhe em lume médio, mexendo de vez em quando, durante cerca de 20 minutos, até os sabores estarem bem apurados. |
Através da comida e das histórias que desfiam, fala-se sobre o colonialismo português que permanece como vestígio nos becos de Cochim. “Se forem à Fortaleza de Cochim, veem casas tipicamente portuguesas. E até nas chamuças há influência. As palavras também: cebola é ‘çavala’, mesa é ‘meesa’, janela é ‘jinala’.” É como se os ecos do passado ressoassem ainda no quotidiano linguístico, como se o império se tivesse dissolvido nos hábitos, nos sabores, nos sons.
Ciência, saudade e futuro: o percurso de Jovel entre dois mundos
Mesmo no seu campo de estudo — a bioengenharia — há espaço para ponderações mais filosóficas. Estuda no Porto há dois anos a engenharia do corpo, a biotecnologia dos tecidos, do potencial humano — tudo isto é, em última instância, uma tentativa de compreender o que nos torna vivos. Jovel não o diz explicitamente, mas a forma como fala da sua área sugere uma inquietação existencial: o que significa crescer? O que significa resistir, curar, regenerar?
O projeto de uma startup começa a tomar forma. Ele vê nisso não apenas uma saída profissional, mas também um gesto de retribuição. Quer ficar em Portugal, talvez. “Ficar em Portugal… porque tenho amigos aqui. Dou muito valor às minhas amizades.”
Quando perguntado sobre as cores que o mundo lhe oferece, responde: “A Índia é verde. Portugal é azul.” Poucas palavras, mas que pintam um imaginário profundo. Verde — exuberância, vida, tropicalidade. Azul — melancolia, mar, céu aberto. A paleta de Jovel é feita de dois continentes e infinitas tonalidades emocionais.
A história de Jovel não é apenas a de um jovem estudante estrangeiro em Portugal. É, sobretudo, um retrato da globalização na sua forma mais íntima. É sobre raízes e rotas, sobre o que levamos e o que deixamos. É sobre o que nos torna humanos — a necessidade de pertença, de memória, de futuro.