Parentalidade. Ter ou não ter filhos: os desafios da maternidade e a decisão solitária
O número de pessoas que optam por não ser pai ou mãe está a crescer. Fátima Ismail, Ana Miguel Lamy e Ana Pinto falam sobre ser ou não ser mães, sobre medos e anseios, de adoção e das pressões sociais e familiares.
[TEXTO DE INÊS RODRIGUES E RAFAEL MACHADO PINTO]
Entre risos, brinquedos espalhados e a confusão diária, há vozes que se levantam e afirmam não querer percorrer o caminho parental. Uma dessas vozes é da Fátima Ismail, de 22 anos, que aponta uma boa saúde mental como um fator essencial à parentalidade. Para si, há experiências familiares que a fazem renegar à paternidade porque tem consciência que quer evitar “ser a mãe que a sua mãe foi para ela”.
Por outro lado, há quem pense noutras soluções além da parentalidade biológica: adotar. É o caso de Ana Miguel Lamy, 22 anos. Sente que veio a este mundo “com um propósito”, o propósito de ajudar o máximo de crianças que conseguir e acolher, em sua casa, pelo menos duas crianças.
Mas há também o mundo “das reviravoltas”, como foi o caso da Ana Pinto, 31 anos. Embora tenha crescido numa família numerosa, durante grande parte da sua vida ter filhos não era um objetivo definido e isso fez com que sofresse com as pressões familiares e no trabalho. Hoje é mãe da Benedita, com um ano, e diz que embora não sentisse falta, é com a filha que se sente completa.
Por sua vez, João Monteiro, 24 anos, estudante do 3º ano da licenciatura de Psicologia na Universidade Lusófona – Centro Universitário do Porto, acredita que para assuntos desta dinâmica é necessário acompanhamento para ter apoio numa mudança tão importante no percurso de vida. “Acho muito importante, mas nem todos acreditam que acham que devem ter acompanhamento psicológico.”
A vontade, ou não, de de ter filhos
Fátima Ismail, 22 anos, é Licenciada em Ciências da Comunicação, na variante de Comunicação e Jornalismo. Atualmente, tem um emprego a tempo inteiro numa loja. A jovem natural de Lisboa decidiu que não quer ter filhos e admite que, “se os tivesse, seria através de adoção”, porque uma das razões que aponta a não querer ter filhos é pelo “impacto que a gestação tem no corpo de uma mulher”. Apesar da autoestima e da autoconfiança estarem bem presentes, Fátima tem consciência que é algo que pode afetar muito uma mulher e não está disposta a correr o risco de as perder. Para além das mudanças constantes que o corpo tem, durante a gestação, a recém-licenciada preocupa-se com a fase do pós-parto e as marcas que ficam gravadas a vida inteira. “Não é só um corpo, é a nossa casa, é onde nos temos que sentir bem. Se nós não nos sentirmos bem connosco, nunca vamos conseguir estar bem com as outras pessoas e muito menos estar bem para criar um filho.” As prioridades na vida de Fátima estão bem definidas: em primeiro lugar está ela e não está disposta a que uma gravidez possa colocar isso em causa.
A sua decisão não se altera relativamente à construção de uma família numa relação sólida. “É mais importante a relação comigo mesma e aquilo que eu penso do que as minhas relações interpessoais”, afirma. Aliás, nesta questão Fátima prefere colocar tudo “em pratos limpos”, desde o início. “Se eu algum dia conhecesse alguém em que soubesse que a pessoa quereria muito ser pai e queria muito ter uma família, era logo das coisas que iria cortar porque isto não é uma coisa que se possa balançar. Ou se tem filhos ou não se tem filhos.”
Em 2022, a Segurança Social interveio em 136 crianças com novos processos de adoção. Uma diminuição de 17% relativamente ao ano anterior. (2021= 164). |
O ambiente familiar é um dos fatores que dita todos os nossos atos. Neste caso, Fátima Ismail diz que “por ter tido pais tão ausentes fisicamente e emocionalmente” sente que “é uma das maiores razões para não querer ter filhos”. Considera que, ainda há assuntos mal resolvidos por tratar e, por isso, nunca conseguia ser uma boa mãe e dar ao seu filho tudo o que precisa. Normalmente, as experiências vividas na parentalidade, sejam elas boas ou más, são moldadas e reproduzidas a posteriori nos filhos. Fátima nunca se sentiu apoiada pela família e diz ainda que “não seria capaz de dar a uma criança algo que eu não tive e que eu ainda não sei trabalhar com o facto de eu não ter tido”.
Ana Miguel Lamy, 22 anos, é natural de Ovar e é estudante de Ciências de Comunicação, na variante de Comunicação Estratégica. Classifica a sua decisão em relação à parentalidade bastante ponderada, no sentido em que existe um bom equilíbrio entre a parte racional e a emocional porque, para si, “só assim faz sentido”. A jovem ovarense partilha que desde cedo foi diagnostica com ansiedade crónica e que afeta emocionalmente várias áreas da sua vida, incluindo a familiar.
“Eu penso em como muito dificilmente suportaria uma gestação e depois um parto”, reflete, “acho que não me revejo nessas situações porque sou uma pessoa com muitas ansiedades e medos”. É neste contexto que entra o fator racional, pois a estudante acaba por concluir que se existem dificuldades na gestação, estas podem-se traduzir em complicações para o bebé. “Tudo o que seja com possibilidade de vir a correr mal, eu já nem coloco em questão”, confessa.
Embora tenha uma relação “muito próxima e muito aberta” com a mãe, a visão da maternidade é algo que as distancia porque Ana Lamy afirma estar bastante atenta à realidade que a rodeia e, por isso, não considera trazer nenhum criança num mundo onde “há tantas crianças a passar mal”. Afirma que não pensa “na criação, ou na procriação” quando se depara com essas realidades à sua volta.
As pressões sociais, familiares e profissionais
Apesar disso, Ana Lamy sente que também tem o chamado ‘instinto maternal’, nomeadamente para os dois irmãos mais novos. “Eu trato-os como se fossem meus filhos. Talvez por termos tantos anos de diferença, sempre tive este sentimento de querer ajudar”, acrescenta. Além disso, revela que quando este assunto é abordado em seio familiar, ainda é vista como uma criança e, por isso, as suas opiniões “nunca são levadas a sério”. Ou seja, critica, o que opina acaba por ser desvalorizado e categorizado “como uma fase”.
No contexto da desvalorização das opiniões de Ana Lamy, as expectativas familiares em relação ao percurso de vida da jovem também são um assunto que mexe consigo. Acredita que os pais “não se conseguem distanciar de forma saudável” do seu papel ao abordar estes temas e que “a gestão das expectativas são muito difíceis de gerir”. “Se eles gostariam de ser avós, até que ponto eu tenho essa abertura de lhes tirar isso?”, questiona.
Ana Pinto, 31 anos, natural de Vila Nova de Gaia, trabalha como animadora social numa Escola Básica, em Vila Nova de Gaia, e é mãe de Benedita, de um ano. Para si, ser mãe, mais que uma decisão, era uma ‘não questão’. Sentia que tudo estava completo na sua vida e revela que “dizia muitas vezes: eu posso acordar e ter uma vontade repentina de ter um filho, mas não sinto falta disso”.
Muitas vezes, algumas situações como cansaço ou uma prática na profissão eram desvalorizadas por colegas de trabalho porque não era mãe. “Eu sentia que muitas vezes a sociedade olhava para mim como uma mulher incompleta porque eu não tinha filhos”, afirma. A animadora confessa que a pressão social não a afetava muito, mas que quando essa pressão vinha da família ou no trabalho, o caso mudava de figura. O que acontecia regularmente no emprego era, em qualquer situação que envolvesse crianças, misturava-se a vida pessoal e a profissional. Ouviu muitas vezes dizerem: “Sabes, falta-lhe ali aquela sensibilidade porque ela ainda não é mãe”. Mas depois de ser mãe, passou a ser vista com outros olhos no emprego, embora não tenha mudado nada da sua postura. “Quanto mais os anos se passavam, mais pesado isso se tornava”, lamenta.
Ana Pinto assume que acabou por se revoltar contra as pressões sociais, porque que não concorda com a pressão dos outros para engravidar. Afirma que chegou a ouvir “alguns comentários bastante desagradáveis”. “Ao fim de um ano, perguntaram se eu não queria ter filhos ou se tinha algum problema, se era ‘seca’? Andavam a perguntar a familiares que se eu tinha casa, se eu era casada, porque é que não tinha filhos? Quem é que tinha um problema: eu ou o Ricardo [marido]?”
Estas pressões, que pretendem fazer com que a pessoa tenha um filho, surtiram um efeito oposto na animadora, levando-a a adiar cada vez mais essa eventual vontade repentina. “Eu queria provar que eu não era só mulher se tivesse ou não tivesse filhos”, reflete. “Eu vivia ali num limbo do não quero/não preciso, mas um dia eu vou querer. Eu tinha a consciência que um dia queria ter, só não sabia era quando. Se não acontecesse, estava tudo bem com isso.”
A pressão social que é colocada nas pessoas que não querem ter filhos pode afetar psicologicamente. “Quando o cérebro perceciona algo como uma ameaça seja real ou imaginária, aquilo que acontece é que instantaneamente há mudanças psicológicas no seu sistema ora fica nervoso ou o batimento cardíaco altera.”
A culpa e a raiva são consideradas emoções que aparecem devido à expectativa colocada pelos pais. Desde cedo que se ouve que “o normal é ter filhos”, quando esta ideia é contrariada surgem problemas. Mas, para João, “a forma como nós nos sentimos também é muito influenciado pelo nosso meio”, acredita.
Não existem idades exatas para tomar uma decisão destas e as circunstâncias da vida levam à reflexão das decisões de cada um. Fátima lembra-se de um dia pensar em ter filhos mas, no entanto, percebe que não passou da pressão da sociedade. “Eu sinto que até uma certa altura da minha vida eu dizia que queria ter filhos era mais pelo o que a sociedade me impingiu de forma inconsciente e bastante consciente também do que propriamente a minha vontade.”
Os medos e as ansiedades da maternidade
As pressões sociais, as expectativas familiares e as compensações económicas são perigos iminentes para a saúde mental, mas há um fator que, para o psicólogo João Monteiro, predomina que é o contexto social em que as pessoas estão integradas. “Há sempre um sujeito ameaçador sobre nós.”
Relativamente a dados de 2022 (data mais recente que INE disponibiliza), atualizado a 15 de junho de 2023, o número médio de filhos por mulher aumentou para 1,43. Foram 83 671 mil nascimentos no ano de 2022, de mães residentes em Portugal, mais 5,1% do que em 2021. Reparamos também que contrariamente a estes aumentos que assistimos, a idade média das mulheres ao nascimento de um 1 (independentemente da ordem do filho) foi de 31,7 (menos 0,1 anos que em 2021). Relativamente ao primeiro filho foi de 20,3 anos, menos 0,1 anos que 2021. |
Ana Lamy revela que a ansiedade crónica com que vive é hereditária e existe compreensão de vários elementos da família em algumas questões da saúde mental, mas nesta área, são sempre situações muito solitárias. “Se eu me deparar com uma situação de depressão pós-parto, até que ponto é que os meus amigos e familiares são obrigados a ajudar nessa situação? Quando se pondera situações como esta, pondera-se sozinha, sem pensar que A,B ou C não podem vir ajudar.”
Ela aborda ainda a questão da incompatibilidade entre casais, tendo em conta que as vontades de ambos, em relação à paternidade, podem entrar em desacordo e ditar o fim de uma relação. Na opinião da ovarense, qualquer decisão não é 100% fechada e tem a consciência de que, de um momento para o outro, pode haver uma reviravolta nesta decisão.
Por sua vez, Ana Pinto conta como foi o seu processo de gestação e revela que, a nível psicológico, passou por momentos bastante angustiantes e algumas lutas interiores, o que a levou a abrandar o ritmo muito cedo. “O meu problema durante a gravidez toda era medos, era stress, era anseios. Eu ia confiante que ia chegar às ecografias e que me iam dizer que a Benedita já não estava”, revela.
O dia do nascimento da Benedita foi o ponto de viragem na sua vida. A maternidade trouxe a Ana “o poder de relativizar tudo” e de “estar atenta aos alertas e necessidades da filha”. Confessa sentir uma felicidade inexplicável, mas que se não tivesse sido mãe, não era algo que a incomodasse. “Antes não me faltava nada, mas agora eu tenho tudo”, afirma emocionada.
Ana confidencia que a filha veio “baralhar tudo” e que Benedita se tornou a prioridade da sua vida, mas com a consciência de que existe uma necessidade de bem estar tanto do lado dos pais como do lado dos filhos. Ela sente que o melhor que deve fazer pela filha é “ser um exemplo para ela”. “Eu não me anulo [enquanto mulher], mas tenho a noção que a minha felicidade depende da dela”, garante.
Um fator que predomina na vida de uma mãe ou pai é o socioeconómico e Fátima tem isso presente de forma bastante consciente. “Já é difícil sustentar uma pessoa só e um casal sustentar-se quanto mais, ainda por cima, ter um filho”, afirma.