Retratos de Campanhã: entre Colômbia e Angola

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Retratos de Campanhã: entre Colômbia e Angola

Campanhã é um bairro que tem sido cada vez mais conhecido pela sua crescente diversidade cultural e é onde conhecemos a história de muitos imigrantes que deslocam para criarem uma nova vida, como a Samuel e Isaac, que são colombianos, e de Sónia, que é angolana, que partilham as suas experiências.

Numa tarde de sábado, tranquila e luminosa, a Rua Coelho Neto, número 11, uma via longa e movimentada, em Campanhã, agita-se com vários carros, trânsito e pessoas que parecem fazer parte da mobília urbana: senhores de calças gastas, polícias a fazer rondas de serviço, senhoras de braço dado e comerciantes a cumprimentarem-se entre si. No fim da rua, como um segredo tropical plantado no Porto, está o Café La Colombiana.

Lá dentro, embora o espaço não seja muito amplo, a luz natural entra generosa pelas janelas, aquecendo as mesas de madeira robusta e os rostos de quem ali se senta. A música caribenha embala o ambiente, salsa clássica como “Llorarás”, de Oscar D’León, e entre risos e vozes com sotaques latinos, percebe-se que este não é apenas um café de Campanhã. É um ponto de encontro de uma comunidade que está a reconstruir a sua vida na cidade Invicta. À entrada, à esquerda, destaca-se um mural colorido que celebra a identidade colombiana: guacamayos, leopardos, papagaios e uma típica chiva num cenário que remete para outra geografia. À direita, o balcão exibe bebidas como Licor Beirão, Martini, vinhos, Bacardi e whisky, entre as quais se encontra também o café colombiano “Tueste”. Elementos decorativos, como a bandeira da Colômbia, um jarrão com pedras nas cores nacionais (amarelo, azul e vermelho) e um pequeno macaco de peluche com vestes típicas — reforçam o sentimento de pertença. Nesse dia, o espaço estava com cerca de 70% da lotação preenchida e os clientes mantinham o ambiente animado. O cheiro a café recém-passado misturava-se com os aromas intensos de fritos, vindos de um expositor ao lado do balcão.

A construção de um sonho

Samuel Malodíaz

Samuel Malodíaz, jovem colombiano natural da cidade de Cali, é um dos trabalhadores do espaço. Tem a fala pausada e postura reservada. Chegou a Portugal há dois meses e meio, impulsionado por “um sonho em Portugal”. Contou: “Cheguei primeiro a Lisboa e estava totalmente sozinho. Conheci uma pessoa que me disse que aqui no Porto me podiam ajudar.” Encontrou emprego em Campanhã, onde vive atualmente. “A gente tem que estar ativo”, observou, referindo-se à constante procura de estabilidade. Considera a zona acolhedora e valorizou o acesso fácil a supermercados e transportes. “Este bairro é o começo, é o progresso, é o primeiro passo. É como o início da escada”, sublinhou. Samuel, que veio para Portugal com o sonho de se tornar jogador de futebol, mantém viva a sua identidade colombiana através do trato próximo com as pessoas e, sobretudo, pela ligação emocional à comida. “Com o sotaque, com a forma como tratamos as pessoas. O trato europeu é diferente do trato latino”, explicou. Sente falta da “carne de janeiro”, prato que ainda não conseguiu cozinhar em Portugal, mas não esconde: “A comida mostra muito da cultura.”

50 metros quadrados de Colômbia

Isaac de la Cruz

Já Isaac de la Cruz, colombiano da cidade de Barranquilla, vive em Portugal há um ano. Chegou ao café através da proprietária, que conheceu numa festa infantil. “Disse-lhe que queria trabalhar e ela levou-me até aqui.” Desde então, o Café La Colombiana tornou-se o seu espaço de identificação: “É como voltar à Colômbia em 50 metros quadrados. Lá dentro, sente-se o ambiente latino-americano. Parece casa.” Isaac destaca a diversidade do bairro e sente-se bem acolhido. “Há muito turismo, muitas pessoas diferentes, é um lugar muito movimentado.” Considera que o trabalho o ajudou a criar relações com colegas e vê a gastronomia como uma das formas mais fortes de preservar a cultura. “Conseguir manter viva a identidade cultural passa muito pela comida. Cozinhar pratos típicos ajuda a transmitir a cultura.” O seu prato favorito é a “salchipapa”, uma combinação de batatas fritas e salsichas, cobertas com molhos e especiarias típicas. “Fiz há uma semana com os colegas e todos adoraram. Ainda não partilhei com portugueses, mas quero.”

Apesar das saudades, diz que o café é “o mais perto que consigo chegar” do sabor de casa. Sobre Campanhã, afirma: “Foi um lugar que me abriu portas para oportunidades de trabalho e estudo. Foi uma entrada para o futuro.” E deixa um conselho a outros migrantes: “Que se abra e experimente. Este bairro tem muitas oportunidades.”

Angola servida à mesa

 Do outro lado de Campanhã, mesmo em frente a estação de comboios, desvenda-se mais uma rica história de uma imigrante angolana que trabalha como empregada de mesa. Trabalha no restaurante Eusébio dos Frangos, em Campanhã, na Rua Justino Teixeira

É um espaço simples, de ambiente familiar, onde as conversas correm ao ritmo do garfo. Naquele momento, com poucos clientes a almoçar tardiamente, o ambiente era sereno. Alguns fregueses saboreavam os últimos pedaços da refeição. Sónia António é, uma jovem angolana, natural de Luanda, tímida e reservada, pronta para contar um pouco da sua história e dos sabores que carrega consigo.

Sónia chegou a Portugal em junho de 2024, no início do verão, trazendo na mala os sonhos de uma nova vida e o desejo de estudar enfermagem. Campanhã, bairro histórico do Porto, foi o primeiro lugar que conheceu ao chegar e acabou por tornar-se o seu ponto de partida e de permanência. “Foi aqui que consegui o meu primeiro emprego”, conta, numa voz baixa, ainda tímida, enquanto ajeita o uniforme de empregada de mesa. Trabalha no Eusébio dos Frangos, servindo os clientes com discrição e cuidado, mas é dentro da sua própria casa, também situada nesta zona, que reencontra uma parte essencial da sua identidade: a cozinha.

Restaurante – Eusébio dos Frangos

“O prato que mais me representa é a tripa, como chamamos à feijoada em Angola. Faz-me lembrar de casa”, partilha, com um sorriso inicialmente contido, mas que vai crescendo à medida que se sente mais à vontade na conversa.  A timidez inicial vai dando lugar à partilha espontânea. A cozinha, percebemos, é o seu refúgio, a sua ponte invisível com Luanda. “Costumo cozinhar sim, em casa. A comida é uma forma importante de manter a cultura. Nós, angolanos, gostamos muito de feijão. E aqui, no Porto, a feijoada é bem feita.” Mesmo sem conhecer restaurantes angolanos por perto, nem em Campanhã, nem no centro da cidade, Sónia recusa deixar essa ausência silenciar a sua herança. Faz tudo com amor, e talvez por isso a comida ganhe um valor que ultrapassa o paladar. É presença, é conforto, é pertença.

Sónia António

Campanhã, aos poucos, deixou de ser apenas um lugar no mapa. Tornou-se cenário da sua reinvenção. “Foi aqui que conheci colegas, que fiz amizades. É uma zona com tudo por perto: supermercados, transportes, a estação de metro. É fácil locomover-me daqui para outras partes da cidade.” Sónia continua a lutar pelos seus objetivos. Sonha estudar, progredir, talvez um dia trabalhar na área da saúde, como enfermeira. Mas não quer perder aquilo que a torna única: a sua origem, a sua língua, os seus sabores. No final da entrevista, já bem mais descontraída, deixa uma mensagem sincera a quem, como ela, chega a Portugal com a mala cheia de expectativas: “A vida de imigrante não é fácil, mas também não é impossível. Deixamos para trás coisas que amamos, para encontrar uma realidade diferente. Há tristeza, há alegria. Mas com força e coragem, conseguimos organizar a vida.” Naquela quarta-feira, com a sala quase vazia e a luz a entrar suave pelas janelas, ficou claro que, para Sónia, Campanhã é mais do que um bairro, é o lugar onde a memória e o futuro se encontram. E, entre pratos simples e aromas carregados de história, um pedaço de Angola continua a ser servido, todos os dias, à sua maneira.