A arte do corte com alma carioca

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A arte do corte com alma carioca

No coração de Campanhã, uma antiga freguesia do Porto em transformação, a ‘Malta Carioca’ não é apenas uma barbearia — é um ponto de encontro multicultural que une histórias de resiliência, empreendedorismo e integração, enquanto reflete os desafios e esperanças de uma comunidade em mudança.

[Texto e Fotos: Beatriz Vendas e Miguel Dias]

Na Rua Justino Teixeira, nº 75, em Campanhã, no Porto, uma pequena placa anuncia: “Fui atrás da felicidade e voltei com o cabelo cortado”. O aviso sintetiza a essência da “Malta Carioca”, uma barbearia que transcende o simples ato de cortar cabelo, por ser um sitio de encontro, de representação de terras de Vera Cruz na cidade invicta. Fundada por Juan Vitor, de 33 anos, este espaço tornou-se um ponto de encontro multicultural que une a cultura brasileira à comunidade local, refletindo os desafios e as esperanças de um bairro em transformação.

Campanhã, freguesia oriental portuense, é um lugar de contrastes. Durante anos, foi considerada uma das regiões mais esquecidas da cidade, marcada por baixos níveis de investimento e infraestruturas limitadas. Historicamente, é conhecida pela sua indústria e conexões ferroviárias, a desindustrialização trouxe abandono e estagnação. Contudo, novos projetos como o terminal intermodal e investimentos imobiliários prometem revitalizar o bairro.

No meio deste cenário de transformação, a “Malta Carioca” é mais do que um negócio: é um espaço de acolhimento e integração, onde culturas se encontram e histórias são partilhadas.

Da cidade maravilhosa ao coração do Porto

“Chegámos com muitas expectativas e sem conhecer nada.”

Juan Vitor

Natural do Rio de Janeiro, no Brasil onde tinha um “pequeno franchise de barbearias”, Juan Vitor chegou a Portugal em 2021 acompanhado pela esposa Letícia Andrade, na esperança de encontrar um porto mais seguro para viver e melhores condições económicas.

“A violência era insuportável; queríamos um lugar onde pudéssemos caminhar sem medo”, conta. Escolheram Portugal pela língua, pela história e pela sensação de proximidade cultural.

Leticia Andrade e Juan Vitor, donos da barbeira Malta Carioca. Fotografia por Beatriz Vendas e Miguel Dias.

“Chegámos com muitas expectativas e sem conhecer nada”, relembra. Determinado a recomeçar, trabalhou durante nove meses para entender o mercado e adaptar-se à legislação portuguesa. A primeira loja foi fruto desse esforço inicial: “Era o que eu tinha no momento e decidi investir”.

A “Malta Carioca” trouxe consigo um toque brasileiro. Desde os cortes mais procurados, como o mid-fade e o high-fade, até à abordagem acolhedora no atendimento, tudo reflete a identidade cultural do fundador. “Queríamos que os brasileiros se sentissem em casa e que os portugueses conhecessem um pouco mais da nossa cultura”, explica o empreendedor.

Hoje, além da unidade em Campanhã, o casal lidera uma segunda barbearia em Ermesinde, localizada dentro de uma estação de metro. O barbeiro atribui o sucesso à dedicação e ao acolhimento caloroso que recebeu da comunidade portuguesa. “Tenho clientes que cortam o cabelo comigo há três anos, o tempo que estou aqui. A barbearia cria laços”.

No entanto, a adaptação não foi imediata. “No começo, o clima, os costumes e até a comida foram desafios, mas aos poucos aprendemos a apreciar tudo isso. Saímos de temperaturas elevadas para um frio de mais de 30 graus de diferença e trazíamos as roupas do Brasil. Quando vestimos as roupas daqui, deixámos de sentir tanto frio”, explica. Outro impacto que enfrentou foi na alimentação: “Aqui, as comidas são mais quentes, mas temos opção. Também gosto do bacalhau à Braga e da francesinha”.

Também no modo de ser e de estar há um imenso oceano a dividir a terra do samba e esta porta de entrada na Europa. “No Brasil, temos o calor humano; aqui, as pessoas são mais diretas. Mas, aos poucos, aprendemos a respeitar as diferenças”, refere o barbeiro.

A história de Juan e de Letícia reflete as dificuldades enfrentadas por muitos imigrantes brasileiros em Portugal. Segundo o Observatório das Migrações, mais de 80% apontam a adaptação cultural e burocrática como um dos maiores desafios iniciais. Apesar disso, exemplos como o da “Malta Carioca” mostram como resiliência e empreendedorismo podem transformar realidades.

Campanhã: uma freguesia em transformação

Apesar de ser uma das zonas com melhores serviços de transportes no Porto, Campanhã enfrenta desafios significativos. A falta de espaços verdes, infraestruturas para lazer e o aumento dos custos habitacionais pressionam os residentes. Segundo estudos recentes, o preço das rendas subiu mais de 30% em cinco anos, dificultando o acesso a habitações para famílias e trabalhadores. “As rendas estão muito altas; por isso, nós tivemos de nos mudar para Valongo”, conta o barbeiro, referindo-se a uma localidade satélite da cidade do Porto. O custo de vida crescente limita o potencial de crescimento da freguesia para as classes trabalhadoras.

Ainda assim, há sinais de mudança. Investimentos em novos empreendimentos prometem dinamizar o bairro, trazendo comércios e oportunidades de negócio. Para Juan, essas transformações podem beneficiar tanto os moradores, como os empreendedores locai e outros imigrantes que queiram tentar a sua sorte na segunda maior cidade de Portugal: “Campanhã tem tudo para se tornar uma das zonas mais dinâmicas da cidade”.

A barbearia que é muito mais do que um negócio

A “Malta Carioca” não é apenas um negócio. Além de cortes de cabelo, o espaço organiza campanhas solidárias, como doações de roupas e alimentos, e promove eventos comunitários. Em 2023, o canarinho liderou uma iniciativa que distribuiu agasalhos para pessoas que vivem na rua. “Ninguém cresce sozinho. Ajudar o próximo é parte da nossa missão”, afirma, crendo que essas iniciativas ajudam a mudar a perceção sobre os imigrantes brasileiros, muitas vezes estereotipados injustamente, promovendo uma convivência mais harmoniosa.

Essas ações fortalecem o papel social da barbearia, que se tornou um refúgio para muitos imigrantes brasileiros em busca de acolhimento e aconselhamento.

Além disso, a “Malta Carioca” é um espaço de encontro onde culturas se misturam. Histórias de vida cruzam-se ali, desde um jovem estudante que procura um corte a um preço acessível até um executivo que valoriza o ambiente acolhedor. “Trazemos um pedacinho do Brasil, mas também aprendemos muito com os portugueses”, reflete o líder da barbearia.

Em datas comemorativas, como o Dia da Independência do Brasil, a barbearia associa-se ao “Dia do Brasil”, evento dinamizado na cidade que é um palco de celebrações culturais, com música, comida típica e partilha de experiências entre os clientes. “É uma forma de manter as nossas raízes vivas e aproximar as pessoas”, explica o carioca.

“Os brasileiros trazem alegria, mas também enfrentam preconceitos”

Juan Vitor

A comunidade brasileira no Porto

Os brasileiros são a maior comunidade estrangeira em Portugal, representando 30,7% dos imigrantes residentes. No Porto, a presença dessa comunidade é notável, especialmente em bairros como Campanhã, que oferecem custos de vida mais baixos em relação ao centro.

Segundo o Relatório de Migrações e Asilo 2023, divulgado em setembro último pela AIMA (Agência para a Integração, Migrações e Asilo), o número de estrangeiros a residir no concelho do Porto aumentou 52,8% relativamente ao ano anterior, ultrapassando a barreira das 35 mil pessoas. O Instituto Nacional de Estatística certifica que metade dos estrangeiros a residir na cidade invicta são brasileiros.

Os dados da entidade que sucedeu ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras não surgem desdobrados por Freguesia, no entanto, os Censos de 2021 já nos diziam que dos 848 estrangeiros que aí viviam, 479 eram de nacionalidade brasileira.   

Muitos destes imigrantes do outro lado do Atlântico são atraídos pela segurança, pelas oportunidades económicas e pela facilidade do idioma. Campanhã, com rendas ligeiramente mais acessíveis, tem-se tornado um ponto de chegada para essa comunidade, que ajuda também a conter a quebra demográfica que já vem dos anos 80. Em 1981, a população da freguesia rondava as 50 mil pessoas, em 2021 não chegava aos 30 mil.

A maioria dos imigrantes brasileiros que chega ao norte de Portugal tem entre 25 e 40 anos, procura segurança e melhores condições de vida. Segundo Juan, a integração cultural é essencial: “Os brasileiros trazem alegria, mas também enfrentam preconceitos. Acredito que iniciativas como a nossa ajudam a construir pontes”.

Dados recentes mostram que muitos brasileiros escolhem Portugal devido à facilidade do idioma e à segurança. Enquanto no Brasil a taxa de criminalidade continua elevada, Portugal é consistentemente classificado como um dos países mais seguros do mundo. Essa diferença atrai não apenas trabalhadores, mas também famílias inteiras e jovens à procura de uma educação europeia.

Um futuro promissor

Com uma segunda unidade recentemente aberta, planeiam expandir ainda mais o negócio. Tem planos para continuar a dar formação aos seus funcionários, sempre com o objetivo de manter viva a identidade da barbearia e dar aos clientes a melhor experiência possível. 

“Queremos crescer sem perder nossa identidade. Cada cliente, cada corte de cabelo é uma oportunidade de criar algo significativo. Por isso formamos todos os nossos barbeiros com um padrão de atendimento brasileiro, para que a experiência do cliente seja sempre positiva”, afirma. Para Juan, a barbearia é mais do que um local de trabalho; é um espaço onde vidas se cruzam e transformações acontecem, nem que sejam apenas no visual de cada cliente.

A história da “Malta Carioca” e do seu fundador, Juan Vitor, é um exemplo de como pequenos negócios podem gerar grandes impactos. No meio das grandes transformações que estão a ocorrer em Campanhã, este pequeno cantinho do Rio de Janeiro no Porto continua a criar laços, unir culturas e inspirar uma comunidade inteira.