O Bolhão que viu crescer os filhos de Maria Argentina Malheiro

[Texto e Fotografia: Nuno Canossa]
Os portuenses sabem, na sua grande maioria, que o fontanário da entrada do Mercado do Bolhão nem sempre lá esteve. Ocupava, durante o século passado, o ponto central do edifício existente desde 1838: o famoso redondo cujas barracas foram durante largos anos propriedade de Maria Argentina Malheiro. O Bolhão foi o seu local de trabalho durante 62 anos, tendo, pouco depois de se ter mudado de Braga para o Porto, conhecido o mercado através da sua primeira profissão: criada de servir. Não muito tempo depois, compra a sua primeira barraca começando a vender hortaliças, depois flores naturais, artificiais, artesanato e, passo-a-passo, Maria Argentina, “sem saber ler ou escrever”, como enfatiza, detém um mini monopólio na porta 322 da Rua Formosa.
Mas não é Maria quem o conta. Perdida no meio de uma maré azul e branca de pano e porcelana, surge Lurdes Costa, de 66 anos, a mais velha de dois filhos que seguiram os passos da mãe, ou não tivessem crescido e vivido infância e adolescência entre as quatro paredes do Bolhão. Num tempo em que ainda não era conhecida como a Lurdes das Toalhas, num dos espaços que herdou da mãe.

As primeiras memórias de Domingos Alexandre Pires, irmão mais novo de 51 anos, começam apenas nos anos 80 do século passado, mas com ainda bem presente a imagem da mãe e da tia de giga à cabeça carregada de flores que iam buscar à outra margem do Douro, em Vila Nova de Gaia. Era nessas gigas que Lurdes dormia num tempo em que a cumplicidade entre comerciantes do Bolhão era diferente, “mais aconchegante”.


Hoje, é tudo muito diferente. Apenas “10 ou 12 comerciantes” sobreviveram à competitividade do aluguer dos espaços que começou a surgir no início dos anos 2000. Mas os vários espaços que a mãe detinha, incluindo um em nome de Lurdes há 39 anos, permitiram à irmã mais velha percorrer Portugal de norte a sul, durante duas décadas, a vender as mesmas flores que Argentina vendia no mercado. “Mas em 2008 tive de voltar à estaca zero, porque o mercado das flores estava em queda”. É por essa altura que, com o turismo em exponencial crescimento, a mãe começa a apostar mais em ímanes, cortiça e artesanato: artigos mais apelativos ao cliente estrangeiro. E, em 2015, já com total autonomia, decide apostar nas toalhas que vêm de fornecedores de Guimarães e em porcelana de Alcobaça que vai “comprar todos os domingos”. E a quem os vende? “Não é a pessoas do Porto, que portugueses já só vêm cá as antigas”.
Foi uma transição assumida com a remodelação que levou os negócios do mercado temporariamente ao centro comercial La Vie na rua Fernandes Tomás. “Aquilo não nos dava nada e muitos negócios modificara-se.”
É o caso do irmão Domingos, que depois de décadas a vender flores com a mãe, e após tomar total controlo do espaço do qual consegue ver Lurdes todas as manhãs, foi forçado a mudar para um novo ramo: o gastronómico.
E já lá vai metade de uma década desde que o mais novo de Maria se tornou o primeiro do Bolhão a vender bacalhau, aperitivos e conservas, altamente procurados pelo cliente típico: o turista. Na sua “A Conserveira do Bolhão”, trata da logística e reconhece que tem faturado como nunca, com a ajuda da família a ser imprescindível. A esposa confeciona, os dois filhos ajudam na venda e o resto da mão-de-obra “tem de ser imigrante, porque é difícil hoje em dia ter portugueses a trabalhar no mercado”.
E Domingos não tem dúvidas:
“Depois da remodelação, o Bolhão deixou mesmo de ser dos portuenses e para os portuenses”.