Trinta anos e três proprietários depois, antiga Fábrica de Mindelo continua ao abandono

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Trinta anos e três proprietários depois, antiga Fábrica de Mindelo continua ao abandono

Quase três décadas depois da falência da original fábrica de Mindelo, o terreno já foi propriedade de três empresas, mas apesar de várias inaugurações, a última em 2024, o espaço continua inutilizado. Ex-trabalhadores continuam sem receber 20% da indemnização.  

[Texto e Fotos: Nuno Canossa, Luís Moura, Sofia Soares, Beatriz Medina e Diogo Soares]

Em 2005, nove anos após a falência da Sociedade Industrial de Mindelo (SIM), os lotes onde se localizava a famigerada Fábrica do Mindelo foram vendidos pela primeira vez, em hasta pública, por uma quantia que rondava os 7 milhões de euros. Nessa altura, o Público noticiara que o comprador, um conjunto de investidores nacionais, havia requisitado anonimato ao tribunal. Dois anos depois, revelaria finalmente a identidade da proprietária, a Parques da EDT – Sociedade de Promoção e Gestão de Parques Empresariais do Entre Douro e Tâmega, numa notícia que assinalava ainda a inauguração de um novo espaço comercial, que não viria a materializar-se.

Ainda em 2007, é publicado um edital, assinado pelo então presidente da Câmara Municipal de Vila do Conde (CMVC), Mário Almeida, que dá conta de um “pedido de licenciamento de operação de loteamento requerido pela MCSEM Imobiliária”, que está ligada à Parques da EDT, pelo nome de Pedro Manuel Barros Pereira, que desempenhava funções diretivas em ambas as empresas. Ainda assim, a CMVC não disponibiliza dados da passagem, hipoteca, compra ou loteamentos do terreno entre 2007 e 2016, alegando ter em mãos um sistema informático obsoleto, apesar de estarem disponibilizados dados referentes ao terreno antes e após o período referido.

A MSCEM – Imobiliária S.A., foi constituída em 2005 – a mesma data da compra anónima dos terrenos da fábrica do Mindelo por 7 milhões de euros – com um capital social de 50 mil euros. Não há qualquer registo da aquisição dos lotes, apenas da sua hipoteca anos mais tarde, em 2016, meses após a Câmara Municipal de Vila do Conde autorizar o início de obras de estacionamento, arruamentos e saneamento.

Carlos Lucena, o homem por detrás da MCSEM

São escassas as informações disponíveis sobre a atividade da MCSEM, empresa que deteve os lotes da antiga Fábrica do Mindelo durante cerca de uma década, sem realizar qualquer obra ou intervenção relevante no local. Segundo apurou o #infomedia, a empresa foi presidida por Carlos Manuel de Brito do Nascimento Lucena, advogado e empresário com presença em diversos setores de atividade.

O nome de Carlos Lucena consta nos ficheiros divulgados no âmbito dos Panama Papers, uma investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ) que expôs estruturas jurídicas e financeiras em paraísos fiscais. De acordo com os documentos públicos, Lucena foi associado à Blanc Limited, empresa registada em Malta, à qual prestou serviços de representação legal e judicial em 2011. A morada residencial de Carlos Lucena, que coincide com a sede da MCSEM e de outras empresas de que é fundador, aparece igualmente referida nesses registos.

Com um percurso marcado por cargos de responsabilidade, Carlos Lucena foi presidente da Assembleia-Geral da Sonae MC e da Media Capital, grupos detentores de órgãos de comunicação social como o Público, a TVI e a CNN Portugal. É ainda cofundador da sociedade de advogados Telles, participou em arbitragens comerciais e integra os órgãos sociais de mais de trinta empresas, incluindo várias do setor imobiliário com sede na mesma morada da MCSEM.

As várias inaugurações noticiadas num período cinzento

Em 2005, semanas após a aquisição do terreno pela Parques da EDT, Mário Almeida, então presidente da Câmara Municipal de Vila do Conde (CMVC), negava ao “Público” qualquer intenção de especulação imobiliária, sublinhando que o objetivo era atrair investimento comercial. Um ano depois, numa notícia entretanto removida durante esta investigação, o “Jornal de Notícias dava conta do entusiasmo do autarca com um novo projeto que previa a criação de centenas de armazéns e milhares de postos de trabalho.

Em 2007, Mário Almeida voltava a prestar declarações ao “Público”, reiterando a ambição de reabilitar a zona industrial com o envolvimento da Parques da EDT. No entanto, o projeto original nunca avançou. Em 2011, o anunciado “Mindelo Park” deu lugar ao “Chinese Trade Center”, apresentado por um novo protagonista: Y Ping Chow, presidente da Liga dos Chineses em Portugal.

Na reportagem da ”SIC Notícias”, além do otimismo de Chow, a então secretária de Estado da Administração Interna, Dalila Araújo, afirmava que o projeto poderia “ajudar Portugal a sair da crise”. Nessa mesma reportagem surgia pela primeira vez na imprensa o nome de Coelho da Silva, apresentado como administrador da MCSEM, a imobiliária então detentora do terreno.

No ano seguinte, em entrevista ao “Jornal de Negócios”, Pedro Barros — administrador da MCSEM e secretário da Parques da EDT — confirmava negociações com a comunidade chinesa, incluindo a possibilidade de transferência da propriedade. A mesma notícia identificava dois acionistas da MCSEM: o grupo MCoutinho e a Templo – SA, esta última com Carlos Lucena nos órgãos sociais.

Ainda na mesma peça, referia-se que, durante as celebrações do Ano Novo Chinês — numa nova inauguração previamente noticiada pelo “Expresso”,  Y Ping Chow afirmava que a MCSEM mantinha ligações ao Banco Espírito Santo (BES) e ao ex-ministro Murteira Nabo.

Murteira Nabo e as ligações bancárias e chinesas

As declarações de Y Ping Chow sobre os laços da MCSEM ao Banco Espírito Santo (BES) e a Murteira Nabo surgem meses antes do colapso do banco, em 2014. À data, Francisco Murteira Nabo era vogal do Conselho de Administração do BES e administrador não executivo do Seng Heng Bank, em Macau. Com um percurso marcado por cargos de peso, presidiu à Portugal Telecom e liderou a Câmara do Comércio e Indústria Luso-Chinesa (CCIL), instituição que tem como missão reforçar as relações económicas entre Portugal e a República Popular da China.

A CCIL integra nos seus órgãos sociais administradores do Novo Banco e da Caixa Geral de Depósitos (CGD), sendo esta última uma das principais credoras no processo de falência da Sociedade Industrial de Mindelo, com prejuízos superiores a 10 milhões de euros.

Francisco Murteira Nabo foi também Ministro das Obras Públicas durante o primeiro governo de António Guterres, cargo que abandonou após duas semanas, na sequência de uma polémica relacionada com a declaração de imóveis, revelada pelo jornal “O Independente”.

Em 50 anos de democracia, apenas entre 2017 e 2021 a Câmara Municipal de Vila do Conde não foi liderada pelo Partido Socialista, embora nesse período tenha sido presidida por uma candidata independente, com o apoio do PS. O #infomedia tentou contactar Murteira Nabo, mas não obteve resposta até à data de publicação.

Neurondragon: nova proprietária, mesmo cenário

“São 37 armazéns, 569 lugares de estacionamento e três novas ruas, numa área total de 70 mil m². A obra já começou e, neste momento, diz a promotora, há 95% dos espaços vendidos.” É esta a entrada da notícia publicada pelo JN, em setembro de 2024, que identifica a nova proprietária dos antigos terrenos da Fábrica do Mindelo: a empresa Neurondragon, Lda. Segundo apurou o #infomedia, a aquisição foi formalizada em fevereiro do mesmo ano, por um valor inicial de 2,6 milhões de euros, podendo ascender a um total de 5,2 milhões.

Constituída em 2021 com um capital social de apenas mil euros, a Neurondragon sofreu alterações na sua estrutura em março de 2023, altura em que os sócios fundadores renunciaram à gerência e cederam as quotas a quatro novos acionistas. Dois deles são proprietários de imobiliárias e um terceiro é cidadão de nacionalidade chinesa.

O anúncio de mais uma requalificação comercial para os lotes da antiga fábrica foi acompanhado por declarações do atual presidente da Câmara Municipal de Vila do Conde, Vítor Costa, que considerou o plano da Neurondragon “uma melhoria significativa do ponto de vista urbanístico” e assegurou que a autarquia atuou com “celeridade” para viabilizar o projeto. O autarca destacou ainda a criação de dezenas de postos de trabalho e apresentou publicamente as alterações propostas pela empresa.

Contudo, apesar do cartaz afixado – e entretanto removido – que anunciava a venda de 95% dos armazéns, fonte da própria Câmara revelou ao #infomedia que o projeto foi reprovado pela arquiteta municipal. Na prática, o terreno permanece inutilizado e abandonado, sem intervenções visíveis nos últimos meses. Três décadas e três proprietários depois, a promessa de reabilitação continua por cumprir.

O dinheiro dos trabalhadores no bolso da Caixa

Durante décadas, a Fábrica de Mindelo foi símbolo da industrialização em Portugal. Fundada por Delfim Ferreira e inaugurada em maio de 1951, a SIM, Sociedade Industrial de Mindelo, produzia tecidos de sarja, camisas e gabardinas, tendo mesmo celebrado contratos com o Estado português para o fornecimento de fardas ao Exército. Nos tempos áureos, chegou a empregar 1600 trabalhadores, oriundos das freguesias vizinhas, mantendo pelo menos 400 até ao seu encerramento, no final dos anos 1990.

A falência, motivada pelo fim dos contratos militares e por desentendimentos familiares, levou ao pagamento de indemnizações aos trabalhadores. No entanto, como viria a descobrir Fernando Gomes, antigo operário e porta-voz dos lesados, essas indemnizações não foram pagas na totalidade. Após um longo processo judicial, a maioria recebeu cerca de 80% das quantias devidas, em 2008 e 2010. Os restantes 20%, no entanto, continuam por pagar.

Segundo os protestos liderados por Gomes, a Caixa Geral de Depósitos reteve cerca de três milhões de euros, parte de um encaixe de dez milhões obtido com a falência da fábrica. O liquidatário judicial, Alberto Lopes, recusou comentar, limitando-se a dizer que “o caso está encerrado há muitos anos”. Entretanto, muitos ex-funcionários da SIM já faleceram, entre eles o próprio Fernando Gomes, em abril deste ano.

Maria Correia, hoje com 73 anos, foi fiandeira na fábrica e viu-se forçada a pedir reforma antecipada após o encerramento, sobrevivendo com uma pensão de 150 euros. “Tenho uma prima que se reformou agora por idade e só lhe disse: se fosse como tu, hoje recebia muito mais. Mas a vida é assim.” Já o pai de Olga Dias, José Correia de Oliveira, também trabalhador da SIM, conseguiu prolongar a carreira até à reforma, passando ainda pela Lactogal.

Maria Emília, de 75 anos, trabalhou quase três décadas na tecelagem e lamenta o abandono do espaço industrial. “Custa ver aquilo assim e nem sequer sabemos o que levou a isto tudo.” José Quintas, de 85 anos, atribui o declínio ao impacto da globalização: “A concorrência chinesa destruiu o ramo dos têxteis em Portugal.” Quem também conheceu os turnos da noite foi o marido de Lucinda da Silva, 77 anos, que trabalhou na fábrica desde os 16. Lucinda, por sua vez, entrou aos 24 e saiu casada, com dois filhos, e uma história que se confunde com a da própria fábrica.

Apesar de várias tentativas de contacto, a Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Peles de Portugal (FESETE) recusou prestar declarações ao #infomedia sobre os direitos em falta nas indemnizações dos ex-trabalhadores da Fábrica de Mindelo.

Trinta anos depois do encerramento da Fábrica de Mindelo, o cenário permanece marcado pelo abandono, a especulação e o silêncio institucional. Entre promessas falhadas, mudanças de proprietário e projetos nunca concretizados, o antigo polo industrial de Vila do Conde transformou-se num símbolo de desinvestimento e desresponsabilização. Enquanto os terrenos continuam vazios e cobertos de vegetação, os ex-trabalhadores aguardam há décadas por justiça e pelo pagamento total das indemnizações. O caso da SIM não é apenas um episódio local — é um espelho das fragilidades das políticas de reindustrialização, da gestão do património urbano e da memória coletiva de um país que tantas vezes deixa para trás quem lhe deu décadas de trabalho.