Da corrida atrás de um sonho, à fuga de um pesadelo
- Enzo Favero
- 13/11/2024
- Sem categoria
O futebol é o desporto-rei e move milhares de jovens à procura de um sonho: querem tornar-se jogadores profissionais. Por todo o mundo, são milhões aqueles que nascem com esse sonho e que tudo fazem para o conseguir, mesmo que tenham que sujeitar-se a situações pouco dignas. A motivação? Para uns será apenas a paixão, para outros a necessidade de ter uma vida melhor e veem no futebol o meio para o conseguir.
[Enzo Teixeira, Fernando Coelho, Hugo Santos, Joao Ferreira e Ricardo Garzon]
Por vezes, em busca desse tão ambicionado sonho, é necessário fazer esforços principalmente para todos aqueles que têm de deslocar-se de um país para outro de modo a terem a oportunidade de jogar num clube federado. Em Portugal, são vários os casos de jogadores, maioritariamente sul-americanos e africanos, que viajam para cá estimulados por empresários que lhes prometem mundos e fundos. Estas promessas muitas vezes não acabam bem e os jogadores são deixados à deriva.
Não há futebol sem seres humanos(??? esta frase não faz sentido). As questões humanitárias ultrapassam a barreira de qualquer jogo, porém, muitas vezes estes detalhes tão importantes ficam para trás. As consequências são, na maior parte dos casos, desastrosas. Jogadores que ficam sem ter o que comer, o que vestir ou até sem teto. Este quadro deixou se ser algo visto como intolerável em nenhuma circunstância, para algo completamente banalizado. Episódios dramáticos acontecem com cada vez mais frequência.
Foi o caso de Aldair Neves, jogador da Associação Desportiva Sanjoanense, emprestado pelo Ponferradina de Espanha. O jovem jogador já sentiu na pele o que é sofrer para tentar alcançar o maior sonho, fazer sacrifícios mesmo sem ter a certeza do dia de amanhã.
O jogador recordou a chegada à Sanjoanense e como foi encarar as dificuldades que lhe foram apresentadas: “Na altura que eu vim para a Sanjoanense o clube não era como é agora, não tinha tantas condições, mas como eu não tinha mais nenhum clube para jogar, acabei por ficar”. Assim como ele, outros atletas também chegaram ao clube de São João da Madeira para jogar: “Estávamos aqui para mostrar o nosso futebol e conseguir subir de patamar”.
As condições não eram as melhores, “os ordenados eram muito pouco” e a habitação usada para os alojar não tinha condições: “aquilo não era uma casa, era um quartel de bombeiros , abandonado, onde depois eles fizeram lá umas construções e meteram os jogadores a viver (…) eram três quartos e cada um tinha três jogadores. Vi aquilo e disse ao meu empresário: “quero muito jogar, mas nestas condições não dá”. Perante esta situação, o empresário colocou-o a viver noutra casa que, no entender do atleta, “não era boa, mas era mil vezes melhor”.
Ainda assim, ao contrário do que aconteceu com este jogador, os restantes, na maioria africanos, tiveram de permanecer no quartel onde dormiam por cima de dois colchões. “Eram condições horríveis (…), havia uma casa de banho para nove pessoas”.
O tratamento era desumano e o clube não se mostrou disponível para melhorar as condições. A alimentação limitada, uma vez que nove jogadores tinham que comer aquilo que, no entender do clube, deveria ser o suficiente para uma semana. A comida durava no máximo cinco dias e os jogadores ficavam sem ter como fazer as refeições restantes: “tínhamos que pedir mais e ainda refilavam connosco (…), eles tinham dito que iam ajudar na alimentação e ficámos a contar com isso”. Quando abordavam o diretor desportivo em relação à questão da falta de comida, recebiam como resposta “vocês desenrasquem-se”.
Eles diziam: “comprámos essa comida para um mês, tem que durar um mês”, chegou a um ponto em que os jogadores que estavam lá, nessa altura eu ainda não tinha chegado, acordaram entre eles que ou só jantavam ou só almoçavam porque a comida ia acabar. Começavam a comer às 18h para garantirem um equilíbrio entre o horário habitual de almoço e o de jantar.
Aldair Neves, jogador do Sanjoanense
Do engano individual para o engano coletivo
Na época 2019/2020 entraram pelas instalações da AD Grijó mais de vinte atletas de diferentes nacionalidades iludidos por dois empresários – um português e um brasileiro – que tinham como objetivo juntar-se a uma equipa de futebol e, dessa forma, concretizar o sonho de os tornar jogadores profissionais de futebol.
Manuel Gomes, presidente do clube, conta como tudo isto aconteceu. “Chegaram aqui a propor-me a criação de uma equipa de sub-23, não os conhecia, mas havia um diretor do Grijó que conhecia o português, porque tinham relações de trabalho e pareceu-me ser uma pessoa credível”.
Com a entrada dos novos atletas ficaram definidas as responsabilidades de cada um. Por parte do AD Grijó, o clube fornecia as instalações, equipamentos, apoio médico e toda a parte burocrática relativa aos processos de inscrição para o campeonato. Os agentes em causa ficavam encarregues das questões financeiras, logísticas e de estadia.
Não demorou muito tempo até o presidente começar a sentir algo estranho: “Um lote significativo de jogadores vivia em Valongo numa casa que tinham alugado para os rapazes. De Valongo para o Grijó não é que seja fácil todos os dias e ainda por cima os meninos não tinham transporte, então um dos agentes tentou alugar uma casa aqui em Gaia, na zona de Vilar de Andorinho”.
De estranho passou a confuso muito rapidamente: “Passado pouco tempo, verifiquei que era muita confusão. Iam jogadores, vinham jogadores, era muita confusão”. Dada esta situação Manuel Gomes decidiu tentar resolver o problema por si e arranjou uma casa “que não tem as melhores condições do mundo, muito longe disso” , mas que deu para os jogadores ficarem por lá.
E escalou para proporções gravíssimas logo no primeiro mês o agente não cumpriu com o pagamento do aluguer num “processo que se foi arrastando”. O presidente do AD Grijó conta: “Entretanto, quando eu percebi, em vez de estarem cinco jogadores a viver na casa estavam quinze e depois ele também foi para lá viver. Participei ao SEF através da Associação Social de Grijó, participámos ao SEF, o SEF veio cá, ouviu os miúdos todos e então foi instaurado um processo crime a esse fulano por extorsão de dinheiro e ajuda à imigração ilegal”.
O estrago já estava feito. Alguns jogadores não podiam sequer ser inscritos porque esse agente “já tinha sacado o dinheiro todo aos miúdos”, pedia-lhes entre 1600 a 1800 euros.
Eu lembro-me que houve uma avó de um atleta, estava aqui, que me ligou uma vez, muito desesperada do Brasil. O miúdo deu o meu contacto e ela explicou-me que, inclusive, venderam bens familiares para construir o sonho dele que era vir jogar para a Europa.
Manuel Gomes, presidente do AD Grijó
Não foi possível obter o testemunho dos visados nesta situação.
Sindicato dos Jogadores
“Casos de abandono no futebol começam a ser cada vez mais frequentes”, afirma Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato dos Jogadores, organização que apoia e representa os interesses dos jogadores de futebol, tanto profissionais como não profissionais, em busca de proteger os seus direitos, interesses e bem-estar.
Clubes de várias divisões trazem jogadores estrangeiros com o objetivo de “ganhar dinheiro através do talento”, tal como refere Joaquim.
“Há aqui um modus operandi que passa por recrutar em África ou na América do Sul“ os talentos do futebol e trazê-los para Portugal, países que podem abrir-lhes a porta para a Europa.
“O maior número de casos acontece em clubes das competições não profissionais e de base regional”, clubes distritais que acolhem os atletas, iludidos pelos agentes de que aquele clube pode ser o clube que lhes vai possibilitar dar o salto para o mundo do futebol profissional, algo que quase nunca acontece: “80/90% dos casos não têm sucesso e aí começa o pesadelo”.
Ultimamente, o norte de Portugal tem tido uma grande afluência de jogadores estrangeiros nos termos anteriormente mencionados, algo nada espantoso já que é a zona do país com maior concentração de clubes, portanto, torna-se a região onde é mais fácil estabelecer ligações entre clube e agente.
Joaquim Evangelista explica exatamente como funciona esse processo, do início do sonho ao tormento.
Normalmente, os jogadores vêm para os clubes chamados barrigas de aluguer, que dão a ideia de que vão fazer parte daquele projeto. Ficam lá uma semana, dormem quinze na mesma casa, depois, passados alguns dias, são despejados e deixa de haver projeto. O pesadelo é haver jovens dos 16 aos 22 anos a terem que se fazer à vida e a não obterem respostas, porque os agentes desapareceram, o clube fechou as portas e eles não conhecem ninguém no país. O Estado não dá resposta e normalmente vem bater-nos à porta.
Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato dos Jogadores
Assim que estes jogadores entram em contacto com o sindicato, Joaquim Evangelista garante que algumas medidas de apoio aos atletas abandonados são tomadas, uma dessas medidas imediatas é a compra da viagem de volta para os seus países de origem. Contudo, alerta para um fenómeno ainda mais grave: “há outros que nem sequer admitem regressar porque não querem ser vistos como falhados e, portanto, vão para outras atividades, muitas vezes ilícitas, vão para a droga, para a prostituição ou para o crime” e complementou dizendo que “este fenómeno, este pesadelo não é aceitável num país civilizado, num país europeu. Estamos a falar de direitos humanos, direito à infância e direito à formação integral”.
Os clubes distritais garantem mais inclusão desportiva para todos os seus praticantes permitindo que jovens locais entrem nesse meio em busca de um sonho. Entretanto, alguns clubes são ferramentas utilizadas pelos empresários que praticam esse intercâmbio ilícito de jovens estrangeiros, deixando alguns sinais claros, como afirma o presidente do Sindicato de Jogadores: “É muito estranho quando se inscrevem 11 a 15 jogadores, ou, de repente, se cria uma SAD num clube distrital. É contraditório e isso devia chamar a atenção das pessoas, mas normalmente não dispara nenhum sinal de alerta.”
Brasil, Argentina, Colômbia e países africanos, Guiné, Congo… São sobretudo estes que veem em Portugal a porta de entrada na Europa. Aqui em Portugal nós conseguimos formar jogadores, mas tem que ser feito de forma legal como fazem os clubes profissionais.
Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato dos Jogadores
Com estas práticas clandestinas regulares no ambiente desportivo, algumas medidas legais precisam de ser tomadas e Joaquim Evangelista alega que algumas delas já são: “Nós normalmente denunciamos às autoridades competentes, Ministério Público, Polícia Judiciária e para o assunto ganhar importância fazemos um comunicado à Imprensa para envolver os media.” e complementa com a importância que o jornalismo tem no combate à esses crimes: Longe da vista, longe do coração. O que não é notícia não existe no mundo. É importante que estes casos sejam noticiados, pois se não forem não fazem parte da discussão”.
Joaquim lamenta também a lentidão da justiça.
Tiago Machado, especialista em direito desportivo, explica o que está em causa neste tipo de casos. Este advogado olhou para os dois casos expostos na reportagem e defende que no caso verificado em Grijó, o clube está isento de culpa, alegando que a grande responsabilidade é dos empresários porque eles é que foram até ao clube, ou seja, esete foi abordado pelos empresários. Pode dizer-se que o normal é o clube pagar, mas isso depende do acordo entre as partes envolvidas. Se o empresário diz “nós pagamos isto, vocês tratam disso”, não vejo que possa haver qualquer tipo de responsabilidade do clube até porque o clube depois acabou por ajudar os jogadores”.
Tiago Machado é claro relativamente aos factos: “ Aqui temos um crime de extorsão por parte dos empresários e o de auxílio à imigração ilegal porque não lhes foi dado aquilo que prometeram. Em termos legais a extorsão tem uma moldura penal considerada grave”.
A situação que Aldair Neves descreve é diferente do ponto de vista legal, uma vez que o responsável máximo é o clube e traz questões relacionadas com a imigração ilegal. Tiago Machado começa por explicar que “o importante é ver se ele tem ou não documentos e tendo pelo menos o passaporte pode, como é evidente, apresentar uma queixa. Depois, convém saber se podem sair ou não, porque agrava a acusação”.
O advogado não tem dúvidas de que se trata de um caso de maus tratos, uma vez que “ ninguém pode vir para cá, trazido por um terceiro que o acolhe num determinado local e o trata da forma que trata. Se não dá acesso a comida decente, se não dá acesso a condições decentes, se não cumpre, em nenhum momento, aquilo que foi o objetivo pelos quais estes jogadores vieram, é evidente que temos um crime de maus-tratos”.
Há base legal para se apresentar uma queixa? Tiago Machado está convencido que sim.
“Podia levar a uma pena de prisão, sendo primária pode ser suspensa, podem ter uma pena de prisão efetiva, uma pena de multa. Ao clube/associação desportiva é aplicada uma pena de multa e acrescido, sendo processo crime, uma ordem de indemnização civil pelos danos causados. E mais, se por acaso não houve contratos assinados entre jogadores e o clube, podemos ter uma eventual prática de auxílio à imigração ilegal”, esclarece este advogado.
Recentemente, explodiu um caso que abalou o cenário desportivo do país. Mario Costa, antigo presidente da Assembleia Geral da Liga, foi implicado num processo de alegado tráfico humano através da Academia BSports.
Estes casos mostram a realidade cruel enfrentada por muitos jogadores de futebol que procuram realizar o sonho de se tornarem profissionais. Muitos deles, especialmente aqueles vindos de países sul-americanos e africanos, acabam por se sujeitar a condições precárias e promessas vazias feitas na maioria das vezes por empresários.
Além disso, destaca a necessidade de uma imposição de medidas legais mais rigorosas e de uma maior consciencialização sobre essas práticas clandestinas no ambiente desportivo. O papel da imprensa é crucial para expor esses casos e gerar uma discussão construtiva em torno do tema.