Música de pai para filho

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Música de pai para filho

Rui Fonseca é pai de João Fonseca. Os dois, juntamente com mais dois amigos, formam a banda de rock português 9500. Não é habitual uma banda entre pai e filho. Normalmente, os filhos seguem as pisadas dos pais mas este é um caso diferente.

Concerto de homenagem a Zeca Afonso na sede do SC Salgueiros. Foto cedida por João Fonseca

É no dia 25 de fevereiro de 2018 que esta história começa. No dia em que João (Fonseca) e Rui (Fonseca) tocaram pela primeira vez juntos. Era um domingo de tarde e a sede do Salgueiros, em Paranhos, estava cheia para um concerto de homenagem a Zeca Afonso. Muitos dos presentes não se aperceberam mas este foi um momento marcante na vida dos dois ao longo daquela hora em que se homenageou uma das mais importantes vozes da música portuguesa, uma influência para ambos tanto na vida como na banda. Rui estava habituado ao palco, enquanto para João esta foi uma tarde de estreia. Olhando para o palco viam-se duas guitarras mas nos primeiros minutos apenas uma aquecia os corações dos presentes na sala. E bem que era preciso naquele inverno rigoroso. Com o andar do concerto Rui chama pela primeira vez o filho João para que este o acompanhe. Nervoso, acompanhou o pai mas e o à vontade ia crescendo. De repente pareciam estar sozinhos na sala a tocarem um para o outro, de pai para filho, como se estivessem em casa.

Hoje, ouve-se uma guitarra, provavelmente acústica, para além da porta do 6º direito. Está escuro, do lado de lá, ao abrir a porta, uma luz ilumina hall de entrada onde se encontra João Fonseca. Parece sorrir, a máscara não o permite ver, mas as rugas de expressão denunciam-no. Calça umas pantufas pretas, afinal de contas está em casa. O som da guitarra ouve-se agora muito melhor [confirma-se que é acústica], vem da sala de estar onde está Rui Fonseca [pai de João] que é interrompido. Os livros nas estantes e o chão de madeira flutuante não permitem o eco, o que é perfeito para som. Há mais uma guitarra no sofá, alguns papéis espalhados na mesa. É certo que esta é uma casa de músicos.

Dinâmicas de família

Cada um escolhe o sítio onde prefere falar. João aponta para o quarto enquanto o pai responde às questões na sala, de maneira a não se sentirem condicionados pelas respostas um do outro e estas serem mais naturais.

Rui Fonseca tem 63 anos e é pai de João Fonseca há 20. Na sala, sentado no sofá e de perna cruzada, conta que ter um filho na banda é uma ligação afetiva e musical, para o próprio, fundamental para a vida. “Ter o João na banda é, obviamente, muito bom. Alarga esta relação de amizade e carinho que temos e ao mesmo tempo envolve-nos numa perspetiva musical de procura e de pesquisa. Acaba por nos dar possibilidade de crescer a todos. Por isso, para além de nos divertirmos, acabamos por estar juntos mais tempo e partilhamos ideais, valores, culturas. É muito interessante ter uma banda de amigos onde há uma relação positiva entre pai e filho na construção das dinâmicas da banda”. Uns minutos depois, no quarto, o filho conta que apesar de ser um pouco mais autoritário, acaba por ser a extensão daquilo que é na vida quotidiana. “É ter alguém que sabe o que está a fazer, pela experiência que tem. Já toca há muitos anos, tem experiência de palco, transmite-nos isso e ajuda a melhorar enquanto músicos mas de resto é a mesma relação que mantenho dentro e fora da banda. Tal como no dia a dia, há momentos relaxados de brincadeira como momentos mais sérios, na banda é igual.”

Segundo um estudo desenvolvido por Aguinaldo José da Silva Gomes Vera da Rocha Resende intitulado de “O Pai Presente: O Desvelar da Paternidade em Uma Família Contemporânea”, num passado recente [e talvez ainda agora, mas de maneira reduzida] a figura paterna encontrava dificuldades para separar individualidade das funções como pai, mantendo-se protegido no silêncio, comprometedor de toda possibilidade de diálogo com a família, especialmente com os filhos. As culturas sempre apoiaram esta postura em que o pai era o chefe de família. Ora cada vez mais, e nas palavras de uma das letras da banda 9500, “os tempos estão a mudar” e esta visão tem mudado. O pai assume agora uma postura diferente em relação aos filhos acompanhando de perto a transformação e contribuindo para ela. Nas palavras das autoras do artigo, “a paternidade que acolhe e convive com o processo de transformações em marcha: o pai que transita entre valores novos e arcaicos.” Rui é um exemplo claro desta realidade.

Trajeto para a banda

Baixo de João Fonseca. Imagem tirada por João Fonseca

No quarto, João encontra-se sentado na cadeira giratória que usa para estar ao computador, confessa também que por vezes pendura nas costas da cadeira uma ou outra camisola que normalmente causa um monte que até ao dia de hoje não percebe porque aborrece os pais. Apesar dos 20 anos ainda se nota “restos” da infância no quarto. O boneco do jogo Crash [um dos clássicos da Playstation 2], e os cromos de desenhos animados na janela são prova disso. Este é o quarto onde cresceu e evoluiu. O cavaquinho, que tocava em novo, e a guitarra acústica, que aprendeu depois, estão pendurados na parede. É agora adulto e o baixo é o instrumento que toca nesta fase da sua vida. Também é o instrumento que está mais à mão. Na banda João toca o baixo, instrumento que aprendeu propositadamente para a banda, porque faltava um baixista. A forma como o começou a tocar é interessante. Podia ter tido aulas ou ver vídeos no Youtube, mas optou por algo diferente. Rock Smith, é um jogo de música [parecido com Guitar Hero só que com instrumentos reais] disponível na plataforma de videojogos Steam e “foi o ponto de partida. Desta maneira comecei a tocar músicas que gosto, de bandas preferidas, do Paul McCartney, Jack Bruce, entre outros. Só depois é que aprendi o básico, mas assim diverti-me mais no processo de aprendizagem”, afirma João, enquanto faz uma demonstração do jogo.

De volta à sala, Rui Fonseca, vocalista e guitarra acústica na banda e professor de filosofia de profissão, explica que “o sentido critico que o amar pelo saber oferece é fundamental para o processo criativo de compor canções.” Noutros tempos, Voos Privados, onde compôs dois álbuns e In Quanticos foram bandas que Rui fundou e integrou e que nunca tiveram grande expressão. Foi mesmo pela guitarra acústica que começou, “não era muito especialista nessa matéria, mas fazia os ritmos e isso ajudou-me a compor algumas músicas. Como também gosto da escrita comecei a escrever e as músicas foram surgindo nestes meandros da poesia da musicalidade.”

Os 9500

Da esquerda para a direita: João Fonseca; Naio; Rui Fonseca; Zé Pedro. Imagem da página de Facebook da banda

Entretanto, João já se havia juntado na sala e fala-se agora da banda, os 9500. Senta-se ao lado do pai, num sofá que dá à vontade para quatro pessoas. Quatro pessoas que também formam a banda, duas delas já estão apresentadas mesmo sendo o Rui e o João os atores principais hoje têm mais duas peças que completam o puzzle. E são fundamentais para uma banda de rock: Zé Pedro que toca a guitarra elétrica e Naio, baterista. Zé Pedro vem para a banda por intermédio de Rui Fonseca que fora aluno de Zé e o convidou para este projeto. Naio é amigo de família. Em condições normais por esta hora deviam estar a praticar para um concerto. Mas estão em casa, e que fazer quanto a isso? Nada. Fala-se, partilha-se e foi o que se seguiu. Foi contada a história de algo que se procura entender quando há uma banda, um filme, uma peça de teatro, no limite uma pessoa. O nome. O primeiro concerto aproximava-se e ainda não havia nome para a banda. A maneira como surge não é habitual, mas fez sentido para todos. “Não tínhamos grandes certeza sobre o nome, fomos dando vários nomes, mas não havia assim nenhum que se encaixasse. Então num dos ensaios estávamos num momento de pausa a improvisar nos instrumentos e o meu pai exaltou-se e disse” – João faz um gesto com a mão a dar a palavra ao pai, solta um riso e continua a história – “Pah! Já trouxemos mais de 9500 nomes de bandas, de grupos, de ideias e vocês não gostam de nada! Já estou farto e cansado disso! E então o baterista [Naio] vira-se para o grupo e diz que é aquele o nome. 9500.” “E foi este, na falta de inspiração surgiu o nome da banda” conclui João.

O reportório já é vasto, tendo Rui escrito ao longo de vários anos algumas das letras da banda. Porto Introspetivo é uma das músicas dos 9500. Já foi escrita há algum tempo e a ideia dela surgiu num passeio entre pai e filho pelo Porto. Na altura o João ainda era pequeno e não se lembra deste passeio, mas a música carrega consigo uma mensagem simbólica “E sem querer saber de cansaço/Dançamos neste Porto que não teme”. No início do ano de 2020 foi gravado aquele que é até hoje o primeiro videoclip dos 9500.

Porto Introspetivo(videoclip)-9500. Vídeo cedido pelos entrevistados

Logotipo da banda. Imagem da página de Facebook da banda cedida pelos entrevistados

Esta é uma banda que se quer afirmar por cantar com sentido, com juízo estético e com crítica porque quer por a música onde deve estar para alcançar o seu patamar. João interpela finalizando “e porque as músicas significam alguma coisa. “Exatamente” anui Rui. A ambição que têm para a banda é a mesma na relação pessoal. De evolução e aprendizagem.