Cobertura Jornalística de Tragédias em Portugal

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Cobertura Jornalística de Tragédias em Portugal

A tragédia da praia do Meco: as fronteiras do jornalismo 

Gabriela Silva

No dia 15 de dezembro de 2013, os noticiários televisivos da hora de almoço abriam todos com a mesma notícia. Sete jovens tinham sido arrastados, durante a madrugada, por uma onda na praia do Meco. Apenas um sobreviveu. Desde então, tem–se multiplicado as reportagens, as notícias e os artigos de opinião. A cobertura jornalística da tragédia da praia do Meco permitiu a reflexão sobre as fronteiras entre o jornalismo e a ficção . 

Fotografia: José Sena Goulão /Lusa

Durante a madrugada…

O aviso aos serviços de urgência surgiu de João Gouveia, o único sobrevivente.

A Polícia Marítima começou as buscas pelos jovens que pertenciam à Comissão Oficial de Praxes Académicas da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. 

Durante a manhã do dia 15 de dezembro, o primeiro corpo foi encontrado. Tiago André Campos, estudante de Comunicação Aplicada – Marketing, Publicidade e Relações Públicas é a primeira vítima mortal deste acidente. A autópsia revelou que a causa da morte não foi afogamento mas fratura da coluna cervical. 

No dia 16 de dezembro de 2013, a Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias decretou três dias de luto. 

As buscas continuaram e os restantes corpos das vítimas mortais foram recuperados nos dias seguintes até o dia 26 de dezembro de 2013.

Várias cerimónias religiosas foram promovidas pelas famílias das vítimas. Centenas de pessoas se juntaram. 

A Universidade Lusófona anunciou, no dia 20 de janeiro de 2014, a realização de um inquérito interno. No dia 21 de janeiro de 2014, o inquérito passou para a alçada do procurador-coordenador da Comarca de Almada. 

A família do sobrevivente, João Gouveia, lança uma carta a garantir que todos os esclarecimentos serão dados às autoridades. Os familiares queixaram-se da “especulação, notícias sem explicitação de fontes credíveis e construídas com base em comentários de quem nada sabe sobre os factos”. 

O Ministério Público atribuiu a investigação à Polícia Judiciária, só dois meses depois  dos acontecimentos.

A casa onde as vítimas estavam hospedadas não foi selada. O exame forense aconteceu um mês depois. 

A roupa e o computador de João Gouveia, o único sobrevivente, foi recolhida três meses depois. 

A reconstituição do processo criminal do acidente demorou dois meses a ser feita.

As circunstâncias daquela noite nunca foram descobertas. As provas da investigação acabaram por levar o processo a ser arquivado devido à falta de indícios de crime.

A falta de justiça pelas vítimas levou ao avanço de uma queixa ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. No dia 27 de maio de 2016, o pai de Tiago Campos declara que Portugal violou o Artigo 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. O artigo declara o direito à vida.

Em 2020, o caso ainda dá que falar. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condenou Portugal por investigação ineficaz. O pai de Tiago Campos deverá receber uma indemnização do Estado português de treze mil euros. 

O Governo Português admitiu recorrer da condenação do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

A cobertura jornalística das televisões da tragédia da praia do Meco

Qual é o papel do jornalismo?
O jornalismo tem como principal objetivo fornecer a todos os cidadãos a informação para serem livres e se autogovernarem. 

O procedimento jornalístico é essencial para que a essência se mantenha.
A disciplina de verificação é o que  distingue o jornalismo de outras áreas (entretenimento, propaganda, a ficção ou a arte). 

A rapidez em noticiar leva a que o processo jornalístico, na maior parte das vezes, não seja seguido, assim surgem as fake news. 

O jornalismo concentra-se em apurar aquilo que realmente aconteceu.


O jornalismo português ficou marcado pela cobertura jornalística da tragédia. 

As televisões ajudaram à procura pela justiça e a investigação da morte dos jovens. A concorrência levou as investigações a chegarem mais longe.

As peças emitidas por cada uma mostraram o estilo próprio de cada estação. Se por um lado, existiu a procura da maximização das audiências noutro a contenção, para não prejudicar os factos que estavam disponíveis.

A CMTV, o canal de televisão do Correio da Manhã, foi um desafio para as outras televisões. Em 2013, a estação estava a começar. O tratamento exaustivo do silêncio do único sobrevivente da praia do Meco e entrevistas exclusivas aos pais de uma das vítimas levou ao início do estilo próprio do canal de televisão. 

O programa de jornalismo de investigação “Sexta às nove” da RTP realizou uma reconstituição com a monotorização com o ex-investigador  da Polícia Judiciária, Paulo Santos.

Com um cariz didático, o antigo investigador permitiu uma maior compreensão do trabalho criminal. Paulo Santos coloca em questão todas as pistas recolhidas, mostrando de como uma certeza e uma prova podem não o ser.

 O programa apresentou as contradições das respostas de jovens estudantes em entrevistas dos programas anteriores. 

A TVI destaca-se pela procura de documentos e pistas que possam dar explicações para o que se passou naquela noite. 

A peça jornalística da Ana Leal no qual está presente uma reconstituição de uma praxe alegadamente praticada pelos alunos da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia, teve reações de apreço

No cenário dos acontecimentos, figurantes trajados representam o papel das vítimas da tragédia da praia do Meco.

Uma voz feminina em off vai narrando o desenrolar da praxe. Por um lado descrevendo o ambiente como sinistro e dando palavra aos figurantes que respondiam ao “dux”, o responsável pela atividade praxística. 

A reconstituição é sobre um exemplo de uma praxe. Não é uma peça jornalística sobre os acontecimentos da madrugada de 15 de dezembro de 2013. O jornalismo não ficciona.

As reconstituições, no jornalismo, são utilizadas para através dos factos e testemunhos descodificar o acontecimento a ser tratado. 

Nesta peça não existem fontes, nem testemunhos, nem factos. Os diálogos que vão acontecendo entre a narração e os figurantes, não existem provas se realmente estes aconteceram. O único sobrevivente do acidente manteu-se em silêncio por isso não se sabe se eles existiram. 

A TVI apresentou esta peça como como  “uma reconstituição do ritual de praxe que terá ocorrido na noite de 15 de dezembro, na praia do Meco. Segundo os dados apurados, o ritual da praxe da Universidade Lusófona inspira-se na «Hora do Diabo», de Fernando Pessoa, e simboliza o levar da ignorância para o mar.”

A cobertura jornalística de tragédias
O Dr. Frank Ochberg fundou o Dart Center for Journalism & Trauma (Centro Dart para o Jornalismo e Trauma). Segundo Ochberg, as redações podem preparar melhor os jornalistas para a  cobertura de tragédias.

O trauma e a tragédia afeta todos aqueles que, de uma forma ou outra, passam por ela. 
Os eventos traumáticos levam as pessoas a ter muita dificuldade a expressar-se sobre o que passaram. 

Enquanto jornalistas, a observação e a descrição passa a ser essencial para dar significado à tragédia. 
As fontes humanas poderão ser mais difíceis de gerir, pela dificuldade da expressão. 

Segundo Ochberg, os jornalistas cobrem a as tragédias para levar os leitores para um lugar que não podem ir e inspirar as pessoas a ajudar. O sofrimento humano deve levar a uma reação humana. 

Ochberg refere que a preparação emocional também deverá feita. Muitos jornalistas poderão sentir-se culpados por não conseguir fazer mais. 
A importância da divulgação de experiências entre jornalistas poderá ser essencial para essa preparação emocional.

A cobertura jornalística de tragédias deverá balançar os fundamentos do jornalismo e as questões éticas. 

As reconstituições no processo criminal 

A reconstituição da polícia judiciária da tragédia da praia do meco aconteceu dois meses depois do dia 15 de dezembro de 2013. 

Mário Costa afirma que as reconstituições devem ser “reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo”

A realização de uma reconstituição deverá ser feita quando existe a necessidade de verificar se um facto poderia ter ocorrido da forma que se apurou. 

Passados todos estes anos, a única certeza que existe foi que seis jovens morreram e apenas um sobreviveu. Ao jornalismo cabe dar as informações para os cidadãos se autogovernarem e à justiça condenar os culpados.