Cobertura Jornalística de Tragédias em Portugal

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Cobertura Jornalística de Tragédias em Portugal

A importância da proximidade geográfica nas notícias “Acidente com autocarro na Madeira faz 29 mortos”

Cláudia Carvalho

Em 2019, na Madeira, um autocarro turístico que transportava 56 pessoas despistou-se, vitimando 29 pessoas, todas elas turistas alemães. O #infomedia faz uma análise da imprensa alemã e da madeirense sobre uma tragédia comum e explica as diferenças na abordagem mediática.

Foto: Homem Gouveia – Lusa

Dia 17 de abril de 2019, um autocarro turístico em Caniço, na Madeira despistou-se e caiu numa ribanceira onde acabou em cima de uma habitação que, na altura, se encontrava vazia. O veículo transportava 56 pessoas, a maioria turistas alemães. O acidente, que aconteceu por volta das 18h30, vitimou 29 pessoas – 18 mulheres e 11 homens – e feriu mais 27, incluindo o motorista e um guia turístico, ambos portugueses.

O desastre foi noticiado um pouco por todo o mundo, com destaque especial em Portugal, onde aconteceu o acidente, e na Alemanha, de onde maior parte das vítimas eram, onde foi notícia durante semanas.  A vítimas mortais eram todas de nacionalidade alemã.

Comparação entre imprensa alemã e imprensa madeirense

Este artigo consiste numa comparação entre a forma como a imprensa madeirense e a alemã cobriram o acidente, as diferenças e similaridades. 

Desta forma, foram analisados nove artigos de meios de comunicação alemães e sete artigos de meios madeirenses.

Em relação às notícias alemãs, é possível observar que dão muito destaque ao facto de as vítimas serem de nacionalidade alemã. Sendo, muito provavelmente, essa a única razão de ser, sequer, algo noticiável na Alemanha.

No site t-online.de, o maior portal de notícias da Alemanha, é destacado logo no lead que “29 alemães morrem” no acidente. No corpo da notícia, explicam o que aconteceu e especificam a nacionalidade das vítimas, tudo isto no primeiro parágrafo. Explicam as ações do governo federal e da polícia. Falam do presidente Marcelo Rebelo de Sousa, de como foi ele a dizer que “todos são alemães” e do que escreveu ao presidente da Alemanha Frank-Walter Steinmeier: “Neste momento, Portugal e Alemanha estão unidos na dor comum”. Terminam com os três dias de luto em Portugal.

No maior jornal diário de qualidade na Alemanha e de circulação nacional, o Süddeutsche Zeitung, a notícia é sobre como os sobreviventes lidam com o choque, à conversa com a psicóloga Marion Menzel. É, praticamente, uma entrevista à psicóloga com perguntas sobre o que se pode fazer em situações de tragédias. Mais especificamente, como lidar e ajudar os sobreviventes das mesmas. Mais uma vez, destacam-se as vítimas – desta vez as que sobrevivem.

Outra notícia do mesmo jornal é um testemunho do casal alemão mais velho que sobreviveram ao acidente. Descreve como o acidente aconteceu, o papel das entidades alemãs e a busca pela causa do acidente. Informam que os feridos vão ser levados de volta para a Alemanha. E que os turistas não eram um grupo coerente quando falaram com as autoridades locais.

O Die Welt é um jornal alemão com circulação em todo o país. Neste artigo lemos que as vítimas mortais foram examinadas e identificadas e  fala-se da idade das vítimas. Há, outra vez, uma descrição do acidente. São usadas expressões como “todos turistas alemães” e “motorista português”. É mencionado Filipe Sousa, o autarca de Santa Cruz, que conta experiência na noite do desastre, de como nunca viu uma catástrofe dessa magnitude. A líder da Igreja Luterana da Madeira é alemã e fala do que aconteceu na noite do acidente ao jornal. Os sobreviventes ainda tentam perceber o que aconteceu e vão precisar de ajuda psicológica. Mais uma vez, fala-se muito da busca pela causa do acidente e de como o Ministério Público está a investigar.

Em Luxemburger Wort, um jornal diário em língua alemã publicado em Luxemburgo, é dito que muitos alemães estão entre as quase três dezenas de vítimas. O Ministro das Relações Exteriores da Alemanha escreveu “Temos que assumir que há muitos alemães entre as vítimas” e a Chanceler Angela Merkel também reagiu. Fala-se feridos e os seus parentes, como tentam superar as consequências físicas e mentais da tragédia e a reação dos portugueses. A causa do acidente pouco clara, uma falha de frenagem foi o que, provavelmente, causou. Segundo o hotel onde os turistas ficaram hospedados, as vítimas da tragédia são da República Federal Alemã. O Ministério Federal das Relações Exteriores em Berlim montou uma equipa de crise e o governo alemão tenta dar uso a uma aeronave de resgate da força aérea para fornecer ajuda rápida aos alemães feridos.

No Der Tagesspiegel, um jornal diário alemão, não é logo dito que as vítimas são alemãs. É simplesmente explicado que morreram pessoas e só depois é que referem que são “turistas predominantemente alemães”, segundo o Ministro Braun. Dois portugueses também estão feridos, o motorista e um guia turístico. As autoridades alemãs chegaram ao local para identificar as vítimas. Ainda que não tenha sido imediato a identificação das vítimas como de nacionalidade alemã, depois faz-se a distinção de quantos alemães estão entre as vítimas e há, também, um retrato das vítimas: 17 homens e 12 mulheres entre as idades de 40 e 60 entre as 29 fatalidades. A chanceler alemã Angela Merkel responde ao “terrível acidente de autocarro” com “tristeza e consternação”. Tal como os outros meios de comunicação, mostra grande preocupação na causa do acidente.

Münchner Merkur é um jornal diário alemão. Começa por, como os outros, dizer o que aconteceu. Houve “29 mortes, todas elas da Alemanha” e uma “trágica” confusão ao recuperar e identificar as vítimas do acidente. Grande ênfase nas vítimas, as histórias das mesmas e dos parentes, mais detalhes. As graves acusações contra empresas de autocarro, como o sindicato dos motoristas portugueses levantou sérias acusações contra a empresa operadora do autocarro do acidente. Alguns testemunhos de sobreviventes e detalhes sobre os mesmos, que voltam para Alemanha. O motorista português fala sobre possível causa de acidente, que ainda não foi esclarecida. Ilse Everlien Berardo, pastora da Igreja Evangélica de língua alemã na ilha, faz memorial às vítimas. Os sobreviventes relatam os minutos terríveis durante o acidente.

O jornal diário regional alemão com sede em Bielefeld, Westfalen-blatt, dá-nos uma abordagem, ligeiramente, diferente aos outros jornais alemães. Provavelmente, porque é um jornal regional, traz-nos duas notícias específicas. Uma delas fala de casal de Minden, uma cidade na Alemanha, que está entre as fatalidades, o que foi confirmado pela família do casal. Dá-nos mais detalhes sobre as vítimas e informa que a polícia local está envolvida na identificação das vítimas. A outra é, também, sobre as vítimas. Um ex-professor de Paderborn e sobre uma pessoa do distrito de Minden-Lübbecke está entre os mortos.

Quanto às notícias madeirenses, falam mais sobre o acidente em si. Dá, claro, destaque imediato às mortes, aos feridos e referem que são turistas alemães, mas não da mesma forma que a imprensa alemã o faz.

O Funchal Notícias é um jornal digital gratuito português de âmbito regional madeirense. Fala sobre o acidente, não dizem de imediato que as vítimas são alemãs. Explica o que aconteceu e as ações do governo português em relação ao acidente.

No jornal da Madeira, analisou-se três peças. Na primeira podemos ler uma notícia focada no facto dos peritos e da polícia alemã terem chegado à Madeira e que os polícias germânicos acompanham e apoiam as autoridades portuguesas na investigação. É a fase de conclusão do processo de investigação. A segunda, fala-nos do motorista do autocarro – português – o que lhe vai acontecer, e sobre as entidades portuguesas (Ministério Público, a Procuradoria-Geral da República e polícia). A terceira notícia conta-nos que as autópsias das vítimas estão, finalmente, concluídas. Há a recolha de dados ‘post mortem’.  O Ministério da Justiça comunica que aguardam “dados como impressões digitais e fichas dentárias por parte das autoridades alemãs”.

As restantes notícias são da RTP Madeira. Um dos artigos anuncia o que podemos comprovar pelas notícias analisadas em primeiro lugar: a imprensa alemã está a acompanhar a tragédia. Nomeia alguns dos “principais jornais ‘online’ alemães estão a acompanhar o acidente na Madeira” (tabloide Bild, Spiegel Online, Frankfurter Allgemeine Zeitung (FAZ), T.online, Focus Online). A seguir, refere a Comissão Europeia que “manifesta `profunda tristeza` pelo acidente de autocarro na Madeira”. Cita o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, e fala do comunicado publicado por Bruxelas. Por último, revela o que Angela Merkel diz em relação ao acidente na Madeira: “tristeza e choque” e como a mesma “agradece trabalho dos socorristas na Madeira”. Desta vez, há mais ênfase nas reações do governo alemão.

Porque existem estas diferenças na abordagem mediática das duas imprensas?

O mais importante é saber a razão de haver estas diferenças na forma de noticiar dos dois países, sendo que estão a falar do mesmo evento. Pensemos primeiro nisto: é comum um desastre que aconteceu em Portugal – ainda por cima numa região autónoma – ser noticiada em muitos lugares do mundo?

Ainda que tenha feito um grande número de vítimas, não é costume acontecer, principalmente ser notícia num jornal regional alemão, por exemplo.

Segundo o professor Carlos Camponez, em 2002, no livro JORNALISMO DE PROXIMIDADE – Rituais de comunicação na imprensa regional, “os públicos, são o resultado dos laços de proximidades, quer sejam eles geográficos, psico-afetivos, sociais ou temporais”.

A pessoas querem ler o que está, de alguma forma, relacionado com elas próprias. Querem sentir proximidade, desta forma, as notícias vão interessar-lhes.

Os jornalistas têm de “filtrar” a informação. É para isto que o gatekeeping existe. Serve de auxílio para separar o que é notícia e o que não é. Como se fosse um “porteiro” que decide o que entra. É a razão pela qual alguma informação é escolhida e outra é rejeitada. A teoria do gatekeeping é muito relevante para a comunicação de massas, pois ajuda os jornalistas a dar às pessoas aquilo que elas querem.

A razão por tal acontecer são os valores notícia. Neste caso, o valor de proximidade. As vítimas eram de nacionalidade alemã, então, era de interesse dos jornais alemães falar de um acidente que aconteceu na Madeira.

O jornalista e professor universitário Rui Pereira explica esta situação com clareza.

“Em ambos os países, fazem sentido, à luz dos chamados valores-notícia, nomeadamente o valor da proximidade. A imprensa alemã centra-se em aspetos que dizem mais respeito à sua sociedade e ao seu público, a portuguesa faz o equivalente. Sociologicamente, os media alemães dotam de identidade individual aqueles que, para nós, são “turistas alemães na Madeira”, isto é, a abordagem mais próxima da sociedade e realidade portuguesas (o turismo madeirense, a tragédia do autocarro e a sua averiguação, as perdas de vidas humanas de um modo, por assim dizer, mais abstracto).”

Ainda que seja o valor da proximidade que faça a imprensa alemã noticiar este acidente de forma tão pessoal, sendo que as vítimas são “uns dos deles”. O que faz um acidente automóvel ter destaque, desta forma, em vários países é o insólito, o fora do normal, o trágico.

“O trágico tem sempre uma força própria, quando irrompe. É, de algum modo, a supressão da normalidade. Assim, a rotina jornalística ocupa-se fortemente do trágico pelo seu inusitado, muito mais do que do rotineiro pela sua não noticiabilidade. A cobertura mediática em ambos os países, parece-me incluir-se no esperável à luz dos padrões jornalísticos.”

Para concluir, podemos entender que a imprensa alemã é dado muita importância às vítimas mortais, aos sobreviventes e até à família das vítimas. Dão-nos detalhes, histórias de vida, profissões… Na imprensa madeirense não vemos esse tipo de abordagem porque não é isso que lhe interessa. O que é importante é o que as pessoas querem saber. Houve um acidente e morreram pessoas. Aos madeirenses é necessário saber o que aconteceu às pessoas, o que vai acontecer agora e de que maneira os vai afetar a eles como comunidade. Inclusive Portugal, como país, quer saber como é que as autoridades e entidades portuguesas estão a agir, muito mais do que como as autoridades e entidades alemãs. O mesmo se passa com a Alemanha.