Comerciantes insatisfeitos com a gestão do Mercado do Bolhão

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Comerciantes insatisfeitos com a gestão do Mercado do Bolhão

[TEXTO E IMAGENS DE: Ana Vasconcelos, Diana Cunha, Inês Rodrigues e Rafael Pinto]

A modernização dos espaços públicos tornou-se um ato cada vez mais habitual nas grandes cidades e o Mercado do Bolhão não foi exceção à regra. Entre as centenas de visitantes que entram e saem, há dezenas de comerciantes que garantem que o local se tornou mais um ‘mercado para turistas’ e apelidam-no de “um segundo Bom Sucesso”. ‘Insatisfação’ é, atualmente, a palavra de ordem. 

Fonte: Porto Secreto – Antigo Mercado do Bolhão

Os comerciantes relembraram o receio que sentiram desde cedo em relação às obras no mercado, anunciadas em 2018. Rejeitaram por completo a ideia da transformação do Bolhão para um local dedicado, apenas e só, ao turismo, agarrando-se com ‘unhas e dentes’ às palavras proferidas por Francisco Rocha Antunes, líder do Gabinete do Mercado do Bolhão. Na edição nº5 do jornal Porto, este recusou a “turistificação” do espaço e defende que este “é para os habitantes do Porto e do Grande Porto”.

O Mercado

O antigo Mercado do Bolhão foi construído em 1914. Este mercado, que esteve em funcionamento ininterrupto durante 104 anos e atravessou diversos processos ao longo de muitos anos – 1992, 2007 e 2015 – para o projeto de reconstrução, que viu luz verde em 2018. Até 2022, o Mercado Temporário do Bolhão teve sede no Centro Comercial “La Vie”. Os comerciantes afirmam que este período negro foi difícil para os seus negócios, já que houve menos clientes e, consequentemente, menos lucro. 

No início do processo de reconstrução, havia uma previsão inicial de dois anos para a conclusão das obras. Em dezembro de 2019, a Câmara do Porto anunciou que a obra de requalificação do mercado seria prolongada por mais um ano porque, alegadamente, era necessário alterar o método de construção. O ‘novo’ Mercado abriu ao público no dia 15 de setembro de 2022, quatro anos depois do arranque das obras. Reabriu com 129 espaços, incluindo 81 bancas interiores, 10 restaurantes interiores e 38 lojas exteriores.

Dois anos passados, começaram a soar alguns alertas entre os comerciantes. A mudança em algumas estruturas na gestão do Mercado do Bolhão faz com que haja quem queira mostrar a sua indignação e denunciar algumas das práticas que, aos seus olhos, são ‘pouco comuns’. 

O presente de quem viveu o Bolhão antigo

Carlos Cerqueira, de 73 anos, é considerado o comerciante mais antigo do Mercado do Bolhão. Trabalha desde os três anos no negócio da família “Horto das Enxurreias” e já viu muitas mudanças a acontecer no Bolhão. O comerciante admite que, atualmente, apesar de se vender bem e do Mercado ter muitas pessoas a frequentá-lo, está claramente destinado aos turistas. 

“O que pertence ao mercado de frescos está ao mesmo preço que nos supermercados, aquilo que não pertence está mais caro. […] Os novos que vêm para aqui não vêm se não for a pensar no turismo.” Além disso, refere que os novos comerciantes precisam de ter preços mais altos para conseguir suportar a renda que têm de pagar. “Eu tenho ali a minha vizinha que vende rissois a 4€ ou 5€ porque aquilo é para turistas e tem de pagar uma renda mensal de 3000€.”.

“Eu tenho ali a minha vizinha que vende rissóis a 4€ ou 5€ porque aquilo é para turistas e tem de pagar uma renda mensal de 3000€.

Carlos Cerqueira

Para confirmar a informação do custos dos artigos, fomos comparar o valor dos mesmos produtos à venda no Bolhão e no supermercado mais próximo, apenas a uns metros de distância. Conseguimos perceber através da tabela comparativa abaixo que, em muitos artigos, o valor dos produtos é mais baixo no Mercado, desmistificando assim a ideia geral de que este, por ser um mercado conhecido, inflaciona os preços todos. Podemos assistir a essa inflação, sim, mas apenas no “rissol frito”, onde o valor entre um e outro difere quase 400% (0,79€ no supermercado; 2,50€ no mercado). Este é um exemplo de ‘artigo turistificado’, um artigo em que o público alvo é, necessariamente, o turista.

Tabela de comparação de preços entre Mercado do Bolhão e Continente Bom Dia (supermercado mais perto do mercado)

Carlos refere ainda que o período de quatro anos no “Bolhão Temporário” foi um período “complicado” para os comerciantes. Houve menor adesão por parte das pessoas, até porque o objetivo das pessoas não é frequentar um mercado dentro de um centro comercial. “Agora que passamos para este mercado, as pessoas já vêm aqui como um mercado de frescos, já não vêm como um centro comercial”, afirma Carlos Cerqueira.

Este comerciante refere que o Mercado tem várias semelhanças a um centro comercial e que a forma como é gerido mudou muito ao longo dos anos. “Por exemplo, é um espaço aberto e não se pode fumar cá dentro. Se a menina trouxer um cãozinho, ele não pode estar cá dentro. Tem coisas piores do que um centro comercial”, diz Carlos Cerqueira. Além disso, afirma que os benefícios não são iguais para todos porque foi proibido vender plantas artificiais, mas existem outras no Mercado que vendem produtos para além daqueles que podem, de facto, vender.

Apesar dos problemas na gerência do Mercado, Carlos Cerqueira admite que já tem visto alguns pontos a melhorar e que a Associação Bolha D´Água tem tido um papel fundamental para uma mudança na gestão do Bolhão. 

“A presidente quis uma reunião com a Associação dos Comerciantes do Porto porque é uma entidade muito maior e tem outro peso e outro respeito do que outra como a Bolha d’Água. A intenção dela era meter a Associação dos Comerciantes do Porto ‘ao barulho’ para, quando for preciso alguma coisa, ela transmitir e ‘fazer ver isso’ à Câmara do Porto porque tem outro peso.”

A motivação de quem luta pelos direitos dos comerciantes

Helena Ferreira

Helena Ferreira é presidente da Associação Bolha d’Água, desde janeiro de 2024, e o seu objetivo é criar um movimento de defesa do Mercado do Bolhão. Este movimento deu-se quando existia uma tentativa de privatização do Mercado, em 2008. A função desta associação é defender a funcionalidade do mercado fresco e tradicional e barrar qualquer tipo de venda a projetos privados, como centros comerciais. No fundo, esta associação nasce de uma petição que juntou 50 mil assinaturas. 

Nos dias de hoje, os principais objetivos da Associação Bolha d’Água são a defesa dos comerciantes do Mercado do Bolhão, a defesa dos comerciantes do quarteirão e a defesa de um mercado tradicional, de frescos e de gestão pública. Helena considera que as obras do Mercado do Bolhão ainda não estão finalizadas porque a sua loja, situada no quarteirão, ainda está em obras, e não é a única. 

“Neste momento, ainda temos três restaurantes que não iniciaram sequer obras. E temos lojas que não iniciaram obras. Por isso, foi inaugurado o Mercado do Bolhão. O que é que é uma inauguração? Uma inauguração é algo que está acabado. Isto não está acabado.”

Helena Ferreira

Terá sido esta a motivação para Helena Ferreira se tornar presidente desta Associação? Helena diz que não, mas que esta foi uma das motivações para se tornar tão “reivindicativa” com a GO Porto (entidade responsável pela gestão do Mercado do Bolhão).

Tudo começou quando entregaram as lojas aos proprietários sem estarem prontas. Mesmo com a loja de Helena com uma grande infiltração numa das paredes, disseram ainda que não se responsabilizavam mas que também a proprietária nada podia fazer para emendar. Para confirmar estes factos explicados por Helena, contactamos a GO Porto diversas vezes, tanto por chamadas telefónicas ou via e-mails, mas nunca mostraram interesse em prestar declarações. 

“Houve duas palavras que me fizeram ser Presidente da Associação de Bolha d’Água: Ditadura e PIDE.” Nas respostas a um inquérito realizado por Helena, antes de ser presidente, aos comerciantes do Bolhão, a maior parte dela começa por “isto é uma ditadura”; “nem no tempo da PIDE”; “nem no tempo do outro senhor”. “E eu começo a ler aquilo tudo. E eu disse, o que é que se está a passar no Mercado? Isto ainda é mais grave. Porque, inicialmente, eu achei que os problemas eram infraestruturais. Eram materiais, no fundo, que era não assumir a responsabilidade.” 

O problema é mais profundo do que aparenta

Helena Ferreira

Helena percebeu com este inquérito que o problema era muito mais grave do que pensava. Os comerciantes começaram a pagar coimas por situações “absurdas”. Quando soube disso, decidiu escrever um relatório no qual apresenta soluções estratégicas a longo e curto prazo. Helena revela ainda que este inquérito foi “muito atacado” e que, por causa disso, “sofreu intimidação física”, tendo ainda sido, numa certa altura, proibida a realização do inquérito.

Acusa ainda que “50% das coimas não estão no regulamento” e dá alguns exemplos de multas atribuídas aos comerciantes:

  • Se algum comerciante ou familiar de comerciante que precisasse de assistência tivesse que fechar a sua banca mais cedo que o horário imposto, eram penalizados com uma coima. 
  • Se alguém subisse com um familiar menor que não pertencesse ao comércio do mercado do bolhão pelo elevador, eram penalizados com coima.
  • Se os comerciantes tivessem que fechar um dia a sua banca tinham que avisar previamente a entidade responsável 30 dias, se não eram penalizados com coimas. (confirmado no regulamento do mercado do bolhão)

Para consultar o regulamento do Mercado do Bolhão, pode aceder aqui.

Após uma análise empírica dos clientes do Mercado do Bolhão, percebemos que os podemos dividir em três categorias:

  • Turistas;
  • Portugueses que vão turistar;
  • Clientes habituais do mercado. 

Helena afirma que o Mercado está a ser gerido para os turistas e a prova disso são as novas bancas categorizadas como ‘comerciantes não históricos’, por exemplo, as bancas com petiscos como rissois, marisco, prova de vinhos e comidas que nem são pratos tradicionais portugueses. 

Acusa também a comunicação social, os partidos políticos e Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto, de só “pegarem nas comerciantes que cumprem a regulamentação e que não lhes acontece nada, para falarem bem do mercado, mas elas não representam ninguém”.  

Fachada do Continente Bom Dia, na Rua Sá da Bandeira

No dia 26 de março inaugurou o Continente Bom Dia, na rua Sá da Bandeira, que fica sensivelmente a 40 metros do Mercado do Bolhão. A entidade responsável pelo Continente, a SONAE, institucionalizou-o como sendo o Continente do Bolhão. “Nenhuma entidade jurídica, particular ou coletiva, pode utilizar o nome, marca ou logótipo Bolhão, sem consentimento expresso do Município do Porto” afirma Helena Ferreira. Segundo o Jornal Porto Net (JPN), o município do Porto considerou “abusivo” o uso da marca do Bolhão. A multinacional prontificou-se a corrigir o erro com a maior brevidade possível. 

“Nenhuma entidade jurídica, particular ou coletiva, pode utilizar o nome, marca ou logótipo Bolhão, sem consentimento expresso do Município do Porto”

Helena Ferreira

O problema visto de cima

Rubens de Carvalho, presidente da Associação dos Comerciantes do Porto, fala sobre a função da associação que apoia qualquer comerciante que esteja inserido no Mercado de Negócios do Porto. Esta associação retrata: “tudo o que tem a ver com a área de contabilidade, finanças, jurídico, licenciamentos, são tudo áreas em que nós estamos envolvidos.”, afirma o presidente. 

A Associação dos Comerciantes do Porto tem uma “estreita” relação, quer com o próprio Mercado do Bolhão, quer com a Associação Bolha d’Água e com a administração do mercado, a Go Porto. 

Conversamos com o presidente, onde revelou não estar inteiramente a par dos problemas que envolviam o Mercado. No entanto, já tinha uma reunião marcada para abordar os comerciantes. Rubens de Carvalho afirma ainda que “as necessidades do Mmercado são um bocadinho diferentes do que eram há uns anos atrás.” Atualmente, “[o Bolhão é uma montra que espelha o Porto para o exterior, não só a nível interno, para o turismo nacional, mas também para o turismo internacional.”

“O Mercado do Bolhão é um espaço de referência, que tem de ser estimulado.” 

Rubens de Carvalho

Quando questionado sobre a criação de produtos visionados para os turistas e como os comerciantes procuram alternativas para manter o seu negócio aceso, responde que “determinadas bancas, percebendo que outros negócios, que estão lá a orbitar à volta da banca, são muito mais proveitosos, eles próprios se sentem estimulados a tentar ter aquele tipo de negócio”. “Se calhar o grande problema está nessa desigualdade da rentabilidade do espaço para o empresário que lá está instalado”, conclui.

O novo Mercado veio trazer um ‘novo ar’ às ruas do Bolhão, mas esse ar torna-se cada vez mais denso com as acusações de má gestão dos comerciantes à GO Porto e à Câmara Municipal. Essas entidades, as quais não conseguimos obter nenhuma declaração há mais de dois meses, são acusadas de abuso de poder e falta de empatia, bem como o aproveitamento económico de rendas das bancas e lojas. A Associação de Comerciantes do Porto entrou recentemente em ação, numa tentativa de amenizar a situação e, de alguma forma, trazer tranquilidade junto àqueles que, todos os dias, recebem os clientes, turistas e não turistas: os comerciantes.

Ines Rodrigues

Inês Rodrigues, 20 anos. Estou no curso de Ciências da Comunicação e pretendo expandir a minha formação até conseguir realizar o meu sonho: ser locutora de rádio.